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30 de dezembro de 2013

Virgínia Beach, Virgínia – Estados Unidos

Quando olha para a mesa que tem no canto da cozinha — uma mesa perfeitamente posicionada próxima a janela, de modo a ter uma brisa fresca ao longo do dia, uma visão clara da televisão acoplada a parede, bem como caminho livre para verificar a sala com uma simples inclinada para o lado —, Angie ainda consegue ver Xavier ali. Vê com tamanha perfeição que tem certeza que é capaz de tocar, sentir a pele inteira e macia, a barba sempre espetando sob seus dedos. Faz com que ela realmente questione se enterrou o corpo dele e se esse enterro aconteceu a tanto tempo quanto o calendário, os números sendo sempre riscados por Ty em uma contagem regressiva sem final, marca. Parece um dia qualquer, com ela chegando afobada do trabalho. Xavier está sentado sempre no mesmo local — e ele fez toda a montagem de modo a ser o lugar mais privilegiado em toda a cozinha. Tem uma xícara em mãos, um livro ou um jornal aberto a sua frente. Ergue o rosto, o indicador passando para a página seguinte, e sorri para ela como se lhe dissesse "bem-vinda de volta, querida". Angie sente falta de tudo, em especial daquele sorriso, que fazia com que ela sentisse que realmente, apesar dos estresses superficiais e cotidianos, ou talvez justamente por eles, tinha a vida perfeita. Quando Angie estica a mão, o coração apertado — o modo como seu coração aperta mudando conforme o tempo tem passado, mas o aperto em si nunca tem um fim —, sente apenas o ar, frio ou morno, depende do dia. Às vezes, para ter certeza, ela balança os dedos, encolhe e estica e faz com que minúsculos e quase invisíveis grãos de poeira se agitem. Nunca há nada, só o vazio, mas a imagem dele não desaparece por completo. Xavier ainda está ali. Angie acha que, de algum modo, sempre vai estar.

Naquela segunda, porém, ao encarar o lugar dele — o lugar que ainda permanece vago na hora do jantar porque todos os outros três moradores da casa o evitam, como se aguardassem alguém — Xavier está sério. Não há nenhum sorriso que sinalize boas-vindas. Há o maxilar travado, o cenho franzido, o indicador subindo e descendo pela parte externa da boca, esfregando-se no lábio curvado enquanto tenta pensar. Ainda tem a alça de uma xícara — aquela que foi feita sob encomenda, em que a escrita, branca no preto, diz "poderoso paizão" — encaixada nos dedos da mão esquerda. Olha para fora. Ele está preocupado.

E Angie também está. Na verdade, talvez a única razão para que o fantasma do marido morto esboce alguma reação seja para personificar o que a consciência da esposa viva precisa. Angie não conta para ninguém, nem para o grupo de apoio ao luto que ainda frequenta, que o vê. É seu segredo. Se ela contar, quanto tempo até que a publicidade leve a retração imediata? Ela não quer perder a visão de Xavier, que ainda não foi danificada pelo tempo e que é tão real quanto pode ser. Além disso, ainda vê-lo é muito mais sobre Angie do que sobre qualquer outro. Angie é religiosa e pode acreditar em espíritos, anjos da guarda e algum tipo de proteção divina; ela só não consegue acreditar que seja tão perceptível assim. Até mesmo porque, se fosse, então Ty não teria passado o último ano com nada além de memórias e nem mesmo Donna. Sabendo que todos os exames feitos, cada radiografia e tomografia, não apresentou nenhuma alteração, Angie acredita que vê Xavier porque ou ainda precisa dele ou porque apenas não soube como se despedir. Qualquer que seja a razão, ela é grata. É grata por ter esse alívio diário, essa pequena onda de carinho e cuidado que ameniza a saudade que sente dia após dia. Angie nunca estaria pronta para apenas dizer adeus. Pelo que ela entende de amor e relacionamentos, Xavier era a pessoa dela. Não há como quebrar um vínculo assim. Simplesmente não há.

A preocupação que os dois compartilham — um e vida e outro em morte — é criada por crianças em choque e falta de informação. Angie e Donna conseguiram, entre água com açúcar, chá de camomila bem adoçado e exercícios para respiração, tirar Becca do estado petrificado em que chegou ali. A adolescente, porém, ainda não tinha se recuperado inteiramente. Com o celular em mãos, movia-se de um lado ao outro, esperando algum tipo de notícia. Tinha deixado a televisão ligada e foi preciso que Ty levasse Ann e Olly para o próprio quarto. Angie podia afirmar que ela e Xavier faziam um bom trabalho educando o garoto; Tyler não se preocupou em perguntar o que houve ou como houve. Ele apenas entendeu que algo tinha dado errado e que era mais útil ajudando. Desse modo, fez algumas piadas frouxas, algo parecido com o que o pai faria, e convidou Ann e Olly para brincar. Baloo, o pitbull de Jack, juntou-se a eles.

O silêncio das águasWhere stories live. Discover now