Ⅱ - Não mais Humano

12 2 0
                                    

Deixei o caderno e caneta acima da escrivaninha quando terminei de escrever o que me lembrava. Decidi que seria melhor se apenas escrevesse quando voltasse para a sala de Renee. Ela estava sentada na soleira da janela, com o brilho de um sol ao fim de tarde iluminando um livro em seu colo. Seu olhar gélido não saiu das letras mesmo quando tranquei a porta atrás de mim.

O salão no qual me encontrava agora parecia assumir uma forma mais clara. Era mais fácil discerni-lo como parte de uma mansão. Ainda assim, eu via os fantasmas passando pelas cortinas, balançando suas cores digitais e iridescentes, e uma luz sem começo atravessar vidros sem transparência.

Segui meu caminho de volta ao corredor que levava a sala na qual me encontrei com o Coringa da última vez. Por um momento, tive a curiosidade de virar e seguir para o outro lado. A sala com as poltronas e o espelho no qual me olhei seria a mesma? Seriam dois lados iguais? Será que as salas mudavam? O Coringa ainda estaria em seu teatro? Eu deveria conferir.

Quando cheguei a sala com as duas portas, olhei-me novamente no espelho. O espelho mostrava minha figura cansada para mim mesmo, como se pedindo para que eu olhasse fixamente, e navegasse na cor de meus próprios olhos, desmanchasse no calor do meu próprio corpo, enrolasse nas mechas de meu próprio cabelo. Encontrasse aquele que estava perdido na tumba de meu ser. Libertasse a verdade daquela prisão de carne.

O ar estava mais quente. As cores pareciam mais vibrantes, como se estivéssemos em um dia de verão. Abri a porta do Coringa apenas o suficiente para conferir se nada havia mudado. Pela fresta, a visão do palco improvisado trouxe certa calma. Voltei antes de que o Coringa me percebesse. Se a sala não havia mudado, a outra porta deveria me levar para outro lugar.

Girando a maçaneta com calma, parei ao escutar um clique retumbante. Uma sala vazia se iluminou por uma lâmpada elétrica no teto. As paredes brancas acetinas criavam uma ilusão estranha de espaço. Se não fosse as sombras, poderia me confundir com um lugar sem fim.

Curioso, passei pela porta e a fechei. Quando olhei novamente para o aposento, um tigre rugiu para mim.

"Alto!" Escutei ele dizer. "Você. Humano. O que faz aqui?"

Pisquei os olhos repetidas vezes antes de formular uma resposta. O tigre estava falando?

O que antes era um branco vazio agora se preenchia com uma jaula em seu centro. Um tigre branco olhava para mim, de dentro de sua prisão, furioso, com olhos azuis cristalinos. Estava completamente imóvel, esperando que qualquer palavra saísse de mim. Quando abri a boca, tive uma sensação estranha em minha língua. Pernas pequenas, andando. Antenas batendo em minha gengiva. Tive a vontade de vomitar. Meu estomago revirava-se, querendo expelir nada além de pura vertigem. Assustado e com nojo, cuspi para fora o que depois vi ser uma barata.

"Quão rude de você, humano!" A barata me falou. "Me cuspindo assim, sem mais nem menos." Ela andou um pouco, chegando para perto de mim. "Vamos, me segure na mão. Não me diga que tem medo?"

Demorei um pouco para me recompor. A pequena cabeça do inseto parecia me olhar com curiosidade. Tive que respirar fundo várias vezes até que a tontura passasse. "Desculpe... mas não foi uma boa ideia sua de aparecer na minha boca, em primeiro lugar." Eu disse, permitindo que ela escalasse minha mão para que eu a escutasse melhor.

"Eu ainda estou esperando sua resposta." O tigre rugiu novamente, chamando minha atenção. "Ignore esse serzinho nojento."

"Eu? Nojento? Você come carne crua!" A barata protestou.

"E você se alimenta de lixo." Replicou o tigre albino.

"Eu vim em busca de respostas." Interrompi. "Estou perdido."

Rosa de Vidro - Primeiro RascunhoOnde as histórias ganham vida. Descobre agora