△ - Pintura a Óleo

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Acordei no corredor perto da sala de Renee, depois que cheguei em casa. Não, espere, tem algo errado.

Eu saí? O que havia acontecido depois que saí da sala do tigre? As memórias borbulhavam dentro de minha mente como um caldeirão nefasto, me confundindo e desnorteando. Eu me lembrava de uma pintura. Uma pintura de Renee, em uma varanda. Eu estava conversando com ela.

Mas, se eu estava com ela, o que estou fazendo indo em direção a seu ateliê? Eu havia saído de lá? Seriam memórias do mundo lá fora? Meu outro eu, e outra Renee?

Até que ponto essas duas figuras se separavam? Eu e meu eu do mundo a fora? Tinha a sensação de que eram a mesma pessoa, mas era complicado garantir que os dois estivessem vivenciando as mesmas experiências. Se eu estava me lembrando de coisas que o meu outro eu estava fazendo, ele estaria vendo o que eu estou vivenciando neste misterioso plano? Muitas questões. Os espelhos da parede pareciam líquidos, cachoeiras prateadas que poderiam me engolir para a caverna do subconsciente. Seria um problema se isso acontecesse. Não há luz lá.

Balancei a cabeça algumas vezes para colocar minha consciência no lugar. Renee me disse para vê-la após explorar mais um pouco. Achei que deveria ser um bom momento, após me encontrar com uma nova sala.

Dei duas batidas na porta antes de abri-la, para avisar de minha chegada. Ao entrar notei Renee lendo em uma das cadeiras, e à sua frente o cavalete segurava um quadro, virado para o janelão.

"Bem-vindo de volta." Ela me cumprimentou. "Creio que descobriu mais sobre este lugar?"

"Sim. Encontrei-me com dois animais."

"Hmm, que interessante. Conte-me sobre." Ela devolveu o livro para a estante, se focando em mim.

"Um era um tigre branco dentro de uma jaula. O outro era uma barata. Conversamos sobre a condição de humanidade. O que significa deixar de ser humano? Me questionei isso com eles. Comecei a duvidar de minha própria condição de humano. É algo que devo levar em conta para descobrir minha identidade. Engraçado... nos questionamos tanto sobre humanidade, eles em formas de animais, mas falavam iguais humanos e questionavam como perderam sua própria humanidade. Poderiam questionar assim se fossem mesmo animais? Hum, isso me traz novas dúvidas."

"Que vieram de uma nova perspectiva."

"Exatamente. Tantas perguntas, poucas respostas... mas ainda assim, sinto que a dúvida está me fazendo bem."

"Dúvidas não são boas." Me disse Renee. "Elas tiram a certeza. Mas entendo o que quis dizer. Perguntas são boas. Elas atiçam o interesse."

Sua frase me impactou por um momento. Olhei em seus olhos gélidos até processa-las por inteiro. Sim... as dúvidas provocam incertezas. Incertezas causam medidas desesperadas. Perguntas, porém, intrigam e atentam o consciente para as respostas.

"E o quadro?" Perguntei.

"Oh, se interessa?"

"Muito. Suas pinturas me intrigam."

"De um jeito bom, espero." Ela me deu um sorriso meigo. Era bonito, estampado em uma face que sempre via inexpressiva.

Fomos nós dois para detrás do cavalete, para onde o quadro se erguia. Quando botei meus olhos nas pinceladas de tinta, minha visão de contorceu, uma ilusão ou memória que se derretia na visão do presente, mostrando o pôr do sol atrás da pintura, e Renee encostada em meu braço. Depois de um momento, a visão não estava mais lá. O quarto era o mesmo, e Renee estava a alguns passos de mim.

"Esse... é um pouco mais pessoal. O que achou?" Ela me tirou de meus devaneios.

Era um autorretrato realista de Renee, com um grande contraste entre a luz e a sombra, lembrando um pouco a estética barroca. O mais curioso, porém, era que estava pintado em tons de cinza.

"Esplêndido." Comentei.

– Vamos, não precisa usar palavras difíceis para elogiar. – Uma voz ecoou do nada. Olhei para Renee, pensando ser dela, mas então vi que não havia nem mexido a boca.

"Obrigada. Achou algo... intrigante, como diz?" Renee me perguntou.

Tomei um tempo antes de responder. Não fora ela que havia falado aquilo agora há pouco? Seria mais uma memória vazada? Argh, que descrença.

– Além da estonteante beleza da retratada? – Disse, com um sorriso no rosto. Quando olhei para Renee, ela parecia confusa.

"Por que está sorrindo?"

"Sorrindo?"

"E agora está vermelho."

Não fora eu que havia dito aquilo? Espera, por que eu diria algo assim? Não que eu não concordasse, mas não era próximo de Renee para a chamar daquele jeito. O que estava acontecendo? Inspirei lentamente té reganhar minha compostura.

"Desculpe, minha mente tem estado estranha." Disse. "Achei curioso ter pintado em tons de cinza."

"Não se preocupe, as vezes minha mente também fica... barulhenta." Não sabia se ela havia entendido ou não minha situação, mas ignorei pelo momento. "Por que acha que pintei dessa forma."

"Posso expressar minha sincera opinião?"

"Se quiser continuar conversando comigo, deverá sempre ser sincero. Prezo honestidade. E consigo ver que você entende a diferença entre ser honesto e grosso."

"Nunca seria grosso contigo." Respondi, de forma cordial. Ela esboçou um leve sorriso. "Acredito que represente como se sente. Ou, talvez, sua visão. Intrinsecamente os dois. Um mundo cinza, mórbido e monótono, sem novidades..."

"No que acredita?" Ela me perguntou. "É mais fácil viver em um mundo só de preto e branco?"

"Mais fácil? Talvez. Mas acredito que o mundo é feito de tons de cinza. Nem tudo é um extremo ou outro."

"Isso é... interessante."

"É como se sente?"

"Não sei dizer, verdadeiramente. Venho pensando neste assunto."

"Quer discuti-lo comigo?"

"Posso falar um pouco. Aquela Fachada... está ficando cheia de si. Você deve ter encontrado ela no caminho. A autoproclamada monarca. A Fachada. A miserável. Aquela Fachada... vive para me atormentar. 'Não submeta ao impulso! Conforme com o padrão!' De novo, e de novo, e de novo ela sussurra para mim! Qual a necessidade de estrutura social aqui? Hmm... o que pensa disto?"

"Regras e impulsos? Depende da hora e do lugar."

"Hmpfh. Uma resposta tão ambígua... mas é melhor que a da Fachada, de qualquer forma. Olhe, a Fachada é minha inimiga. Eles iriam me controlar, como juiz e júri. Escute... você ouve, não é? A voz deles! Maldita. Fora! Sua maldita Fachada!" Ela dizia, enquanto olhava freneticamente para os arredores, segurando para não perder a razão e chutas tudo ao seu redor. "Eu não estou enganada! Eu não sou uma falha! E-Eu...!"

Ela colocou uma de suas mãos em sua face, como se segurando uma lágrima.

"Perdoe-me." Ela se virou para mim, com seu olhar impassível um pouco abalado. "Eu não consigo focar em uma conversa agora. Se você não se importar... poderia voltar mais tarde? Eu o verei quando descobrir mais sobre o lugar."

Apenas assenti com a cabeça, e me virei para a porta. Antes que eu saísse, percebi que ela olhava para a janela, imóvel. Coloquei a mão sem seu ombro, sem o pressionar. Ela não se mexeu. Sussurrei um "eu voltarei", e saí pela porta.

Me perguntei qual a cor que ela enxergava do céu pela janela.

Rosa de Vidro - Primeiro RascunhoOnde as histórias ganham vida. Descobre agora