Prólogo.

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"Vigiai e orai, para que não entreis em tentação;
na verdade, o espírito está pronto, mas a carne é fraca."
Mateus, 26:41

Steve Rogers era padre de uma pequena paróquia, num vilarejo pouco conhecido no interior de uma cidade imensa. Após anos à procura do que verdadeiramente amava, ao iniciar a graduação de Teologia, ele finalmente acreditava ter encontrado no sacerdócio sua única vocação. No auge de seus 38 anos, servir à Deus era sua prioridade há pelo menos oito destes. Ao concluir a faculdade, Rogers havia aberto mão de quaisquer luxos ou prazeres carnais e entregado sua vida exclusivamente à seu único Senhor.
Ainda que morando e atuando em um local com pouco mais de 100.000 habitantes, o padre conhecia cada um dos religiosos de sua igreja e suas respectivas famílias. Alguns dos fiéis inclusive o admiravam excepcionalmente por isso, acreditavam que esse diferencial era capaz de trazer mais pessoas para lá, afinal, todos apreciavam o acolhimento. Ele, por sua vez, não considerava isso grande coisa, mas gostava de retribuir o carinho recebido desde sua chegada.
Era sábado à noite e Steve havia acabado de trancar a igreja. Estava agora na mercearia da cidade, novamente perdido em reflexões internas das quais tentava se livrar. Apesar de amar o que fazia, era tudo calmo demais. Monótono demais. Repetitivo demais. Sua rotina era a mesma todos os finais de semana. As celebrações aos sábados à noite, as missas aos domingos de manhã e mais uma, às 18h da tarde. Ele lutava contra tais pensamentos enquanto planejava o sermão dos dias seguintes, quando foi interrompido ao sentir uma mão tocando-lhe delicadamente o ombro esquerdo.


- Boa noite, padre Rogers. - Sharon Carter, uma de suas fiéis, lhe disse com um sorriso casto. - Que surpresa vê-lo por aqui.


- Boa noite, senhorita Carter. Como vai? - Cumprimentou-a com um aceno de cabeça enquanto escolhia alguns pães e frutas. - Sim, é uma coincidência. Vim buscar o jantar.


- Sabe que é bem vindo para jantar conosco, não sabe? Eu e titia nos sentiríamos honradas em recebê-lo.


- Muito obrigado, mas terei que declinar do convite. Não é apropriado. - Desviou o olhar, colocando um suco de laranja na cesta que carregava. - Vejo vocês na missa?


Rogers estava acostumado com o agrado dos paroquianos. Entretanto, embora religioso, ele não era ingênuo. Tinha consciência de que era um homem bonito e percebia quase instantaneamente quando determinadas cortesias vinham pelos motivos errados, com segundas e terceiras intenções. À princípio, fingia não perceber. Com o passar do tempo, tornaram-se mais diretos, quase obrigando-o a posicionar-se.
Ao finalizar as compras, caminhou novamente para a igreja. Ele morava na parte de trás da capela. Depois de preparar algo e comer sem pressa alguma, tomou um longo banho e pôs-se a recolher-se. Antes de dormir, ajoelhou-se apoiando os cotovelos no próprio colchão e orou. Pediu perdão pelos pecados e adormeceu.



-



Era domingo de manhã. Mais precisamente, às 08h45min. Faltavam quinze minutos para que Steve iniciasse a missa. Essa celebração era a favorita dele, costumava ser a mais cheia e mais animada. Depois de um café reforçado, dirigiu-se ao santuário. O local já estava cheio, as pessoas costumavam chegar com certa antecedência. Enquanto caminhava, Rogers observava calmamente cada um. Foi quando seus olhos pousaram por alguns segundos em longos cabelos ruivos e desconhecidos. Ele tinha certeza que nunca a tinha visto ali, o que lhe despertou certa curiosidade ainda que só a tivesse visto de costas. O padre reverenciou-se quando chegou ao altar, cumprimentando todos os presentes e finalmente podendo vê-la de frente. Ela definitivamente era nova ali, uma incógnita. Estava sentada do lado de Melina Vostokoff, uma senhora a quem ele conhecia de longa data e não faltava um domingo sequer. Antes de iniciar, ele pediu perdão silenciosa e internamente pela pequena distração naquele importante momento.


Steve terminou o sermão daquela manhã com um verso do segundo livro de Pedro: "Assim, sabe o Senhor livrar da tentação os piedosos e reservar os injustos para o Dia de Juízo, para serem castigados.". E ele arqueou uma das sobrancelhas ao ver a tal ruiva revirar os olhos de forma quase imperceptível. Quase, pois ele notou imediatamente. O padre reparou também que no momento da Eucaristia, ela havia permanecido sentada o tempo inteiro, não consumindo o sagrado pão. E ela havia sido a única em toda a igreja. Após o encerramento da celebração, ao despedir-se de alguns fiéis, pôde vê-la se aproximando. Mas não vinha sozinha.


- Bom dia, padre. Obrigada pelo sermão, foi muito esclarecedor. - Melina falou amigavelmente. - Esta é minha sobrinha, Natasha Romanoff. Vai ficar comigo agora, achei necessário apresentá-la ao senhor e à igreja.


- Bom dia. Seja bem vinda à nossa humilde comunidade, senhorita Romanoff. Caso esteja sentindo-se deslocada, tenho certeza que nosso grupo de jovens ficaria feliz em recebê-la. Sei como pode ser difícil adaptar-se no início.


- Muito obrigada, mas não está nos meus planos. Não pretendo ficar por muito tempo. - A ruiva finalmente falou. - Minha tia me fez preparar uma torta para o senhor. - Entregou-lhe a forma.


- Eu agradeço, mas não precisavam se preocupar.


- Posso ir, titia?


Vostokoff respirou pesadamente, afirmando com a cabeça. - Sabe onde está a chave, não sabe? Vou conversar com o padre Rogers e chego em alguns minutos.


Ao ficarem sozinhos em um canto mais afastado e iluminado da igreja, Melina sentou-se em um dos bancos, apoiando ambas as mãos nos próprios joelhos.


- O que te aflige? - Steve lhe perguntou.


- Natasha me preocupa. - Suspirou. - Ela perdeu os pais há um mês, sou sua única família.


- Sinto muito por isso, espero que Deus lhes dê o conforto necessário. Vou colocá-las em minhas orações.


- Ah, não se martirize com isso. Minha irmã era... Bom, me admira que tenha demorado tanto a acontecer.


Rogers arqueou uma das sobrancelhas. - Posso ajudá-la com algo, irmã?


- Tenho medo de que minha sobrinha se afaste de Deus, padre. Foi uma tormenta convencê-la a vir passar esse tempo comigo. Veja, ela não é mais uma criança, já tem 25 anos. Não importa a idade, passar por isso não é fácil para ninguém. Mas tenho percebido que ela tem perdido um pouco a fé. Acha que pode me ajudar?


- Posso tentar, mas não sei bem se sou a pessoa mais recomendada a fazer isso. Talvez o grupo de jovens ainda seja a melhor ideia.


Melina riu. - Se convencê-la a participar, eu terei que lhe preparar pelo menos mais cinco tortas em agradecimento. Já foi uma enorme luta trazê-la hoje. - Levantou. - Bom, demos tempo ao tempo, não? Muito obrigada, padre.


- Disponha. Me avise caso eu possa ajudar com mais alguma coisa.


- Padre?


- Sim?


- Acha que poderia jantar conosco hoje à noite? E compartilhar algumas de suas experiências com Deus, claro. Acho que faria bem à ela.


Steve precisou ponderar por alguns minutos antes de responder. Ele nunca considerou isso apropriado, independentemente da pessoa ou do momento. Mas a situação parecia pedir por isso, não parecia? Bom, Deus sabe que ele aceitou o convite na melhor das intenções.

Losing My ReligionWhere stories live. Discover now