A Maldição - Parte 1

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"Que minha solidão me sirva de companhia,
Que eu tenha coragem de me enfrentar,
Que eu saiba ficar com o nada e mesmo assim
me sentir como se estivesse plena de tudo"
Clarice Lispector

SEHER
Quando eu disse "Não" aquele dia, não imaginei que estava dizendo não à minha própria vida, mas, ainda assim,teria dito o mesmo "não".
Se eu soubesse das consequências de minha resposta, ainda assim teria dito "não".
Eu escolhi minha integridade, escolhi ter escolhas, escolhi a mim mesma.
Me chamo Seher. Em uma outra vida eu era apenas uma mulher simples, que morava com o pai, cuidava dele, cuidava da casa.
Até o dia em que o conheci. O homem que transformou minha vida em um inferno.
Seu nome era Hakan, um homem poderoso, rico e mau, que um dia colocou seus olhos em mim.
Hakan me queria e não aceitou minha recusa. Me perseguiu, foi implacável. Tentou me pegar à força, mas consegui escapar.
Quando ele percebeu que eu jamais seria dele, fez o impensável.
Naquele dia, há exatamente um ano, minha maldição começou...

********

YAMAN

Jogos os lençóis para o lado e me sento na cama. O calor está tão intenso que meu corpo todo está molhado de suor. Alcanço meu celular na mesa de cabeceira e vejo que são 3 horas da manhã. 
Não há a menor possibilidade de dormir com este calor.
Caminho até a sacada do meu quarto sem me incomodar em vestir qualquer coisa.
Ao abrir as portas, sinto a leve brisa da madrugada envolver meu corpo nu. As cortinas se movem, roçando em mim, deixando minha pele arrepiada.
Dou alguns passos para sair e olho para o céu. A estrela do norte brilha soberana, ela sempre me fascinou. Por algum motivo, sua força e seu brilho me afetam, me fazem sentir poderoso, como se ela estivesse lá exclusivamente para mim.
Hoje ela está particularmente brilhante.
O jardim da mansão está calmo, a não ser pelas copas das árvores que se movimentam com o vento. Corro meu olhar pela propriedade, ainda sem acreditar em tudo que conquistei na vida. Mesmo após tantos anos, é difícil acreditar que saí da miséria pra ter um império. Não que eu tivesse buscado a riqueza, nunca foi meu propósito, mas eu busquei poder. Precisava de poder e respeito para nunca mais passar pelo que tinha passado na infância. Eu pago um preço caro por isto. Não é possível ter o poder que eu tenho, sem sacrificar uma parte da sua alma.
Eu pago este preço pela minha família e pelo desejo de nunca mais passar pelo que já passei na vida.
Estou prestes a voltar para dentro do quarto quando avisto algo estranho no meio das árvores.
Parece... uma mulher?
Ela caminha nua por entre as árvores com seus longos cabelos castanhos voando com o vento. Quando percebe que estou ali ela para e se vira para mim.
Por alguns segundos ficamos ali nos encarando. É impossível desviar o olhar, como se estivéssemos em alguma espécie de transe, hipnotizados.
Fico tão fascinado por sua beleza que por um momento me esqueço que ela é uma intrusa que está no meu jardim, mas então me dou conta da situação.
Como ela invadiu minha casa? O que está fazendo ali?
Entro correndo no quarto e no caminho para fora coloco calças de pijama.
Quando saio de casa vou direto para o jardim. Corro por todo lado, mas ela simplesmente desapareceu.
No portão, o guarda parece alerta.
- onde ela está?
- Sr. Yaman? De quem está falndo?
- Da mulher! Onde ela está? Eu a vi no jardim agora há pouco!
- Uma mulher no jardim? Que coisa estranha, por aqui ninguém passou, não sai do meu posto. Tem certeza de que viu alguém?
- Claro que tenho!
- Senhor, a menos que ela tenha pulado este muro alto, não tem a menor possibilidade de ter uma mulher andando pelo jardim.
Saio irritado com o guarda. Ele provavelmente dormiu e não quer admitir. De qualquer forma a mulher não está mais aqui. Eu olhei em tudo.
Volto para o quarto com a imagem dela na minha cabeça. O corpo perfeito, os cabelos longos revoltos com o vento, os olhos de espanto ao me ver.
Quem era aquela mulher?
Esta pergunta me atormenta o resto da noite, de modo que só consigo fechar os olhos novamente quando o sol começa a aparecer no horizonte.

********

Na manhã seguinte estou acabado pela falta de descanso. Desço para tomar o café da manhã com os olhos ardendo.
A mesa está vazia.
Vou até a cozinha e também não vejo ninguém, mas pela janela percebo que todos estão lá fora. Ziya, Adalet, Neslihan e Yusuf  estão agachados olhando alguma coisa.
Saio pela porta da cozinha e vou em direção a eles.
- O que está acontecendo aqui?
- Sr. Yaman?- pergunta Adalet preocupada- não vi o senhor aí. Nós estamos dando comida para o gato.
- Gato? Nós não temos gato nenhum!
Yusuf se levanta com um gato branco em seu colo.
- Eu sei tio, mas esta gatinha tem vindo aqui para a mansão de manhã, já faz 3 dias, e eu a alimento. Ela estava muito fraca e magra.
Adalet se adianta.
- Sr. Yaman, eu sei que deveríamos ter pedido permissão ao senhor, mas o Yusuf ...
- Não tem problema, Adalet. Se ele quer ficar com o gato, tudo bem.
- Gata- fala Yusuf
- O que?
- É uma gata, tio.
- Que seja. Vamos tomar café então, que já estou atrasado pro trabalho.
A gata pula do colo de Yusuf e vem se esfregar na minha perna. Eu não gosto particularmente de animais, então normalmente eles fogem de mim, mas a gata se enrolou na minha perna e esfregou a cabeça na minha calça. Ela parece entender que a deixei ficar em casa.
Me abaixo e a pego para olhar seu rosto. Ela tem olhos verdes, me encara de uma maneira estranha. Olha bem nos meus olhos e solta um miado.
Posso estar ficando louco, mas tenho certeza de que ela acaba de me agradecer.  Coloco a gata do chão e vou tomar meu café. Ela volta para sua tigela de comida.

********

Na noite seguinte acordo com o barulho do trovão reverberando pelo meu quarto. Meus sonhos turbulentos não me deixaram ter um sono tranquilo. Aquela mulher...
Não consigo tirar da minha cabeça a mulher nua andando pelo jardim. Provavelmente estou ficando louco, é simplesmente impossível que tal mulher estivesse ali. Acho que estou trabalhando demais, só pode ser alucinação pelo cansaço.
A chuva começa a cair forte lá fora e me dou conta de que deixei a porta para a sacada aberta. Com o vento e a chuva, posso sentir os pingos me atingirem. Eu poderia fechar a porta, mas não vou. Me levanto e fico em frente à ela recebendo os pingos gelados da chuva. A tempestade de fora também acontece dentro de mim. Tenho vontade de gritar, tenho vontade de me entregar ao sentimento que me assola.
Eu sou um homem atormentado pelo meu passado. Metade de mim é pura raiva, a outra metade é ainda um garotinho que foi abandonado pela mãe. Há quanto tempo eu não dou um sorriso? Nem sei.
Eu não sei como aplacar esta raiva e não sei o que fazer com o garotinho acuado. Estou sufocado pelo meu passado, sem chances de respirar.
Dou três passos em direção a sacada. A chuva forte castiga minha pele e meu corpo nu. Eu não me importo. Quero ser castigado. Quero sentir a dor. Sentir dor é melhor do que não sentir nada.
Com o barulho ensurdecedor da chuva e dos trovões, libero o grito que está preso na minha garganta.
- Aaaahhhhhhh
Eu grito com os punhos fechados, mas isto não me alivia.
Dou outro grito.
- AAAAAHHhHHhH
É como se esta raiva dentro de mim ficasse tão grande que agora transbordou do meu peito. Ou talvez meus gritos sejam um pedido de socorro.
Um raio corta o céu, iluminando parte do meu jardim e lá está ela. A mulher da noite anterior.
Ela me encara. Está toda molhada. Ela também parece atormentada.
Desta vez eu não saio correndo. Quero ver o que vai fazer.
A mulher permanece ali, olhando para mim como se quisesse me dizer alguma coisa.
Me aproximo do parapeito para vê-la melhor.
Tenho vontade de pular dali e ir ao encontro dela, mas estou no terceiro andar da casa.
Meu corpo reage de forma violenta aquela visão.
Mesmo com toda aquela água, com os raios, o frio que me deixa arrepiado, sinto meu sexo crescer.
A mulher não se move. Apenas me olha.
Posso ver detalhes que não pude ontem. Posso ver seus seios redondos e seu quadril. O triângulo escuro cobrindo sua intimidade, os cabelos longos, agora molhados, que passam da cintura.
Tenho a impressão de que ela está chorando, mas não posso ter certeza. Suas lágrimas, se estiverem ali, se misturam com os pingos da chuva.
Nós ficamos ali por nem sei quanto tempo, depois ela se vira de costas e se esconde entre as árvores dos fundos.
Ela testemunhou meu momento de desespero, um momento em que não consegui segurar dentro de mim toda a amargura da minha vida. Ninguém nunca testemunhou isto.
Mas apesar de ter me exposto deste jeito, só consigo pensar em seu olhar triste.
É como se ela também tivesse a mesma tormenta dentro de seu peito. Como se nós dois fôssemos vítimas das garras malignas do passado.
Eu senti isto.
Entro no quarto com um só pensamento. Vou descobrir quem é a mulher que anda pelo meu jardim à noite. Eu juro para mim mesmo que encontrarei esta mulher.
Palavra de Yaman Kirimli.

Continua...

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