1. O Último Ato de Sara

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“Mas me esforçando não consigo Te amar mais
Na minha força eu me canso e nada satisfaz
Então largo tudo no silêncio, no escuro
E Te contemplo
E entendo o porque estou aqui
Entendo porque eu nasci
Pra ser amada por Você
Pra ser uma com Você"

Bonecos de Plástico - Palankin

16 de novembro de 2021, terça-feira.

Samara estava na sala de estar vendo TV quando ouviu algumas batidas no portão. Levantou a cabeça e olhou através da janela para tentar ter uma ideia de quem seria. Pegou a chave que estava pendurada num prego e foi até lá. 

— Quem será? Eu nem estou esperando ninguém. — disse para si mesma e encaixou o objeto na fechadura.

Ao abrir, deu de cara com dois desconhecidos: um rapaz negro, alto, com os cabelos devidamente aparados e olhos castanhos. Ele usava roupas simples, calça jeans em lavagem escura e uma camisa xadrez. Em suas costas carregava uma mochila grande. Bem ao lado dele estava uma moça, uns dez centímetros mais baixa. Tinha pele parda, cabelos longos, lisos e escuros. Usava um vestido rosa e tênis branco. Segurava a alça de uma pequena mala com a mão esquerda. Diferente do rapaz que se mantinha sério, ela parecia estar prestes a sair saltitando. 

— Quem são vocês? — Samara perguntou com uma expressão confusa.

— Você deve ser a Samara, não é? Viemos de muito longe justamente para te encontrar. — a mulher comentou sorrindo, depois de olhar o pequeno papel que segurava. Samara notou que ela tinha um português meio arrastado.

— E ponha longe nisso — o rapaz acrescentou — Nossa, nunca imaginei que Goiânia seria tão quente. — comentou sacudindo a blusa.

— Compartilho do mesmo pensamento. — A mulher levantou o cabelo e começou a abanar o rosto com a mão esquerda. 

Samara jogou os cabelos ruivos para trás e observou a cena calada.

— Tá, mas quem são vocês e o que fazem aqui? — tornou a perguntar depois de cruzar os braços e as duas pessoas se entreolharam.

— Que modos os nossos, estamos tão empolgados que nem nos apresentamos. Eu me chamo Aisha, muito prazer em conhecê-la — a moça respondeu estendendo a mão para ela. 

Samara estava achando a situação para lá de estranha, nem sabia quem eram aqueles dois.  Mas a cumprimentou para não parecer mal educada

— Eu sou o Estevão, também é uma alegria imensa poder te conhecer. — o rapaz repetiu o mesmo movimento de sua companheira.

— Estevão e Aisha. Entendi. — respondeu balançando a cabeça em confirmação. — O que querem aqui?

— Pelo amor de Deus, Aisha. Ela deve estar achando que somos dois loucos. — Estevão comentou dando uma risada.

— Caramba! Ainda não me acostumei com o fato de podermos falar esse nome livremente sem ter medo de levar um tiro! — Aisha exclamou exageradamente animada e Samara arregalou os olhos de modo aterrorizado.

— Calma, desse jeito só vamos confirmar o que ela já acha. 

— Eu não estou achando nada. — Samara respondeu levantando a sobrancelha. — Só quero entender o que duas pessoas que nunca vi na vida estão fazendo de frente ao meu portão. 

— Está bem, vamos lá e sem rodeios. Éramos amigos bem próximos da Sara, a sua irmã. — Aisha informou. 

— A Sara? — Samara pronunciou aquele nome depois de tanto tempo, que sentiu a saudade inundar seu coração. 

— Sara havia preparado uma coisa para você, mas antes que pudesse entregar toda aquela atrocidade aconteceu. É tão estranho, ela parecia saber o que aconteceria. Na noite anterior a tudo ela nos encarregou de trazê-lo até aqui. — Estevão completou.

— Demoramos três anos para conseguir, mas tenho certeza que aconteceu no tempo do Senhor. — Samara não pôde deixar de reparar que Aisha estava a ponto de dar piruetas ao pronunciar aquele nome no meio da rua.

Depois de muito pensar, chegou a conclusão de que aquelas pessoas não tinham más intenções. Mas ainda estava confusa. Sara tinha um presente para lhe entregar antes de morrer? O que poderia ser? O que não passou pela sua cabeça era que toda aquela situação seria uma resposta de Deus para ela. Ao sair de suas divagações, percebeu que não poderia deixar os amigos da irmã no meio da rua.

— O que acham de me acompanhar até uma lanchonete? Poderemos conversar mais à vontade. E vocês devem estar com fome. — Samara sugeriu. — Não é que eu não queira recebê-los em casa, é porque não tem nada aqui que eu possa oferecer além de miojo e ovo frito.

— Acho uma boa ideia. — Aisha e Estevão disseram ao mesmo tempo, em seguida deram risada pela coincidência e Samara os acompanhou no ato.

— Esperem aqui um instante, vou entrar para pegar minha bolsa.

                                                                       ***

Os três escolheram um assento bem ao lado da janela, que dava uma visão ampla da avenida movimentada. Depois de pedirem comida, Estevão tirou da mochila uma lata amarela com a pintura já bem desgastada, mas Samara ainda conseguiu distinguir que a embalagem abrigava originalmente biscoitos amanteigados. O rapaz estendeu para ela, que olhou para aquilo sentindo um misto de emoções. 

— O último ato de Sara foi escrever cartas para você, mas não sabemos o conteúdo. — ele explicou.

— A única instrução foi para que se ela mesma não conseguisse entregar, deveríamos fazer isso em seu lugar. Também nos disse para ficar ao seu lado enquanto lê, e que após finalizar todas deve dirigir seus questionamentos a nós. — Aisha deu continuidade.

Samara não esperou uma ordem, logo abriu o objeto e encontrou ali dentro três envelopes, numerados na ordem em que deveriam ser lidos. Sem se conter de curiosidade, rasgou o primeiro e tirou o papel amarelado dali. 

— Me esqueci de um detalhe, ela pediu que deixássemos uma bíblia ao nosso lado. — Estevão informou, interrompendo o momento de Samara. Ele colocou o livro no meio da mesa.

— Esperem, tem certeza mesmo que podemos falar sobre esses assuntos e mostrar esse livro tão… livremente? Esse lugar está cheio de pessoas. — Aisha estava tensa, olhando para os lados o tempo inteiro.

— Tudo bem sim, aqui somos livres para professar nossa fé em qualquer lugar. Embora não demos o devido valor a essa dádiva. — Samara respondeu dando um sorriso, mas seu coração doía com aquela afirmação.

— Vá em frente, leia as palavras dela. — Estevão pediu.

Ela abriu a folha e iniciou a leitura do que mudaria sua vida para sempre. 

Cartas Para Samara [Concluído]Onde histórias criam vida. Descubra agora