3. O Ato de Amor de Aisha

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“O Pai me adotou teu amor me encontrou
Eu era órfão, hoje sou filho”

Eu Era Órfão - Nel Braga

7 de setembro de 2018, de um lugar distante.

A paz de Cristo, minha querida Samara. Como tem passado? Demorei um pouquinho para escrever pois estava passando por alguns problemas, eu e mais alguns missionários fomos descobertos e precisamos fugir para não sermos mortos. Levou um tempo para nos adaptarmos ao novo ambiente, mas a graça do Senhor nos sustentou. Como prometido, estou aqui para contar a história daquela pessoa especial. 

Se lembra quando eu liguei do aeroporto dizendo que estava a caminho do Oriente Médio? Quando chegamos ao nosso destino final, era uma vila no interior bem afastada da cidade grande. No segundo dia eu e Estevão, meu melhor amigo, resolvemos andar por aquele local para conhecer os moradores e ir preparando o terreno para semear. As pessoas eram em seu geral muito gentis e aptas a ouvir, eram muito carentes de amor. 

Meu coração logo se compadeceu. Aconteceu que nos esbarramos por acaso com uma moça, ela deveria ter seus dezoito anos de idade. Seu olhar transmitia angústia e dor, ela parecia tremer de medo a cada palavra de seu pedido de desculpas. Ficamos curiosos para saber quem era ela, então perguntamos para a dona da casa onde estávamos ficando. Ela nos contou que aquela moça se chamava Aisha, era a única filha de um comerciante da região e parecia sofrer muito nas mãos do pai, por isso vivia amedrontada.

Aisha foi a primeira pessoa para quem pregamos a palavra ali, foi visitar a senhora da casa em um dia durante a tarde e aproveitamos a oportunidade. Ela se sentiu muito tocada quando eu disse que Jesus havia morrido para salvá-la e que Ele a amava muito, que estava de braços abertos para recebê-la e chamar de filha. Nós nem pedimos que ela dissesse nada, mas por conta própria decidiu contar sua história de vida. Seu pai era muito bruto e violento com a esposa e filha, Aisha disse que o motivo era a mulher não ter lhe dado um filho homem, mas sim uma menina.

Para ele era uma vergonha, pois deveria ter alguém para ser seu sucessor. Nos contou que durante toda a vida palavras de repulsa foram direcionadas a sua pessoa, seu próprio pai dizia que ela era um fardo e que nunca deveria ter nascido. Aisha não sabia o que era o amor, apenas a dor. Todas as noites era uma tormenta em casa, passou a se culpar por tudo sendo que na verdade era inocente. Sua mãe morreu quando ela tinha 10 anos, e então ficou sozinha.

Aisha apanhava do pai quando ele chegava bêbado, era obrigada a fazer os trabalhos pesados como um castigo. Segundo o pensamento do homem, ela era a responsável por sua linhagem fracassada já que era "amaldiçoada''. Então sua obrigação era lidar com as consequências por ter “roubado” o lugar no ventre que supostamente seria do filho homem. Aisha pediu a nós que lhe ajudasse a tirar aquele peso que carregava, e que não era seu. Dissemos que quando Jesus entrasse em sua vida, ela poderia confiar nEle, podia ter certeza que receberia amor e teria um Pai. Aisha estava sedenta, chorou prostrada enquanto o confessava como único e suficiente Salvador. Oramos por sua alma, começamos a falar mais sobre Jesus e ela foi embora na boquinha da noite, feliz como nunca. Mas as provações logo começaram, seu pai não gostou que a menina chegou tarde e deu uma surra nela, nem conseguiu se defender.

Uns dias depois Aisha apareceu novamente, cheia de hematomas nos braços. Sabe o que mais me deixou admirada? Ela não murmurou, só pediu uma oração por ela e pelo pai, cumprimos seu desejo prontamente. Também nos pediu uma bíblia, avisamos os riscos que ela corria, que poderia ser presa. Mas Aisha não sentiu medo, sabe o que ela me disse? Que se Deus estava com ela, não deveria temer, mas sim mostrar que era fiel em todos os momentos.

O que nós tínhamos naquele momento era aquela mini bíblia com o novo testamento, lembra que você costumava ter um com a capa rosa? Os exemplares estavam todos em português pois havíamos trocado as malas sem querer com a de outros missionários que estavam indo para o Amazonas. E novamente Aisha surpreendeu tanto a mim quanto Estevão, ela pediu que lêssemos para ela e também lhe ensinasse a língua para que ela pudesse ler em sua casa e compartilhar as boas novas. 

Aquela menina é muito esperta e inteligente, em um mês ela decorou todo o livro de Atos e passou a recitar para as crianças de sua vizinhança. Ela se tornou nossa discípula, ensinamos tudo o que sabíamos e ela também nos ensinou muito. Mas um infortúnio aconteceu, o pai de Aisha descobriu tudo e ficou muito bravo, exigiu que ela parasse com o que segundo ele eram bobagens e que denunciasse as pessoas que tinham feito a “lavagem cerebral''.

Aisha não fraquejou, não negou a Cristo e também não nos denunciou. O pai ficou fora de si, amarrou a própria filha em um tronco e a espancou, não aceitava que a filha fosse cristã. Ela ficou ali por três dias e três noites, agonizando de dor, com fome e com sede. Samara, você não imagina o quanto estava frio, ao ponto de nevar. Porém, ela permaneceu ali, recitando Romanos 8 insistentemente em voz alta e cantando Eu Era Órfão de Nel Braga que havíamos ensinado para ela uns dias antes.

Mesmo fraca, Aisha não parava de entoar a canção, eu conseguia ouvir de longe. Também podia ouvir os gritos de: “Eu não nego o meu Jesus, mesmo que me mate”, “Não vou denunciar essas pessoas que me apresentaram o amor”, “Ele morreu por mim, se for preciso darei a minha por Ele.” O pai se irritava quando ela dizia isso, e voltava a bater na garota. Eu e os outros missionários ficamos tão angustiados, com o coração tão apertado, intercedemos e jejuamos em prol da vida de Aisha dia e noite, para que o Senhor estivesse com ela e lhe ajudasse a ser forte. 

Até que chegou o dia de irmos embora daquele país. Samara, algo tão extraordinário aconteceu. O pai de Aisha foi ao encontro da filha, que já se encontrava ao ponto de desmaiar, o Senhor estava mantendo ela de pé, não tenho dúvidas alguma.  Ele disse a ela que durante a madrugada, teve um sonho estranho, onde o próprio Jesus apareceu perguntando o motivo daquilo tudo, e porque ele o estava perseguindo. 

Disse que coisas boas foram faladas sobre Aisha. O homem soltou as cordas e mandou a garota ir, somente com a roupa do corpo, e que ela nunca mais voltasse a vê-lo. Aisha foi, mesmo com o coração despedaçado. Cuidamos dela, de seus ferimentos, a vestimos e demos comida. Sabe o que ela disse após tudo isso? Que faria tudo novamente, iria orar e ler aquela bíblia de novo. Quer saber o que isso me ensinou, Samara? Olha para nós que pertencemos a um país livre, temos a chance de falar do nosso Salvador, ir à igreja, ler a bíblia, e todas as demais coisas livremente. 

Ninguém vai aparecer revistando nossas casas, nos mandar para campos de trabalho forçado, não vão nos torturar nem nos obrigar a negar a Cristo. Mas nós não damos valor a isso Samara, quanto tempo gastamos com futilidades e contendas por coisas desnecessárias ao invés de lermos mais a palavra? Conheci muitas pessoas que sonhavam em poder segurar uma bíblia, e nós deixamos que elas fiquem empoeiradas na estante. 

O ato de amor de Aisha deve ser um exemplo para todos nós. Que a partir de agora possamos refletir no que temos feito com nossa vida espiritual e se realmente colocamos em prática o que pregamos. Nós realmente amamos Jesus ao ponto de sacrificar nossa vida por Ele? Hoje Aisha é uma amiga muito próxima, e se casou com Estevão no ano passado. Eles são muito felizes juntos, não há dúvidas de que Deus os presenteou com testemunhos e uma história de amor maravilhosa. Ela também é missionária, nós três viajamos o mundo inteiro. Quer saber o que aconteceu com o pai dela? Você pode perguntar pessoalmente.

Que a paz de Cristo esteja com você, para todo o sempre.

Com amor, Sara.

Cartas Para Samara [Concluído]Onde histórias criam vida. Descubra agora