Piloto

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Tiquim sempre teve uma personalidade muito forte, típica do seu tipo. Em bom humor, mostrava todos os dentes encardidos, assustando a quem queria alegrar; em mau humor, os mesmos dentes cumpriam a mesma função — Tiquim não era muito do tipo bem-expressivo.

O seu castanho sem brilho assemelhava-se a cor de chá mate bem fraco, e os olhos grandões eram cor sim, cor não; e a ausência da visão num dos olhos nunca foi problema — para ele, — via e ouvia tudo muito bem. Mas o que Tiquim tinha de bom mesmo era o olfato, sentia cheiro até de perigo, e era exatamente isso que ele sentia pairando no ar. Ele corria pra lá, pra cá, perdido igual boneco do The Sims quando se cancela uma ação.

Dona Odete via tudo de sua sala. Por trás da grade de pintura verde-desbotada e da cortina de flores coloridas na sua janela da sala de estar, os olhos da velha perseguiam o cachorro caramelo com uma curiosidade quase voraz. O vapor do café no copo americano subia até seu queixo, dançando levemente pelo seu rosto enrugado antes de sumir de vez no ar, criando uma silhueta quase tenebrosa pra quem quer que visse tal cena do lado de fora — mas ali não havia ninguém além de Tiquim [ou pelo menos era isso que a velha pensava].

Estava tão atenta com a algazarra solitária do cachorro que só percebeu tarde demais que a broa em seu forno tostava, já exalando o fedor de queimado por toda a casa.

— Mas que puta que o pariu! — a voz de Odete ecoou rouca e grave demais, naquele timbre típico de décadas fazendo mau uso da nicotina, enquanto apressava-se rumo à cozinha — Infeeeeerno!

Puxou o pano de prato sobre a pia, desligou o forno e abriu a porta já abanando o tecido, expurgando o fumaceiro pra todo lado. Usou o avental florido com a mão livre, já pegando a forma quente sem sofrer com o calor do metal — coisa de quem tem anos de cozinha nas costas —, e jogou a forma pra bancada da cozinha. Xingou mais um pouco, sem deixar de continuar balançando o pano de prato pra todo lado, criando um desenho abstrato no ar com as cores vibrantes do crochê bordado no tecido levemente encardido.

Atenta demais em sua desesperada tentativa de dissipar os vestígios de seu desleixo na cozinha, Odete saltou de susto ao ouvir a campainha gritar alto lá da sala. Instintivamente levou a mão pro peito, ofegante, e tacou o pano de prato pro ombro num ágil movimento, correndo pra janela da cozinha e a abrindo num sopetão abrupto.

— Já vai, inferno! — Gritou quando a campainha tocou a segunda vez.

Foi da cozinha pro corredor que cortava o meio da casa, dando acesso à saída da frente e dos fundos — e à todos os cômodos dali — e dirigiu-se para a entrada da casa. Tirou o bolo de chaves do suporte em forma de borboleta e procurou pela chave certa em meio a uma dezena de chaves diversas [algumas para portas que Odete nem fazia ideia mais].

Ao destrancar a porta da frente viu, na mureta gradeada de sua casa, sua sobrinha-neta lhe aguardando.

Bença, tia! — a moça tinha a voz fina, meio carregada em um misto de timidez e desconforto.

— Ô Juliana-- Jolaine-- Beatri-- Bernadete! — Odete foi corrigindo-se nome por nome até acertar [não pode-se comprovar, mas diz-se que senhoras idosas devem mediante a contrato errar o nome certo de seus parentes mais novos, citando todos os outros antes do correto]. — Deus te abençoa, menina! Entra, tem café! O bolo deu uma queimada, mas tem uns biscoitos!

— Tô satisfeita, tia! — Bernadete sorriu, mostrando seus dentões brancos e perfeitamente alinhados — Vim só pra ver como tá a senhora.

— Nada disso, — Odete cerrou as sobrancelhas, fazendo um bico grande o suficiente a ponto do lábio tocar levemente a ponta de seu narigão — Magrela desse jeito que ocê tá, logo o vento te leva. Vem comer, nem que seja um biscoito, eu ein!

P.P.P. - Projeto: Pode piorar?Where stories live. Discover now