Três

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O quarto estava em absoluto silêncio. As cortinas não apenas estavam fechadas, mas coladas nas paredes com fita dupla-face — uma garantia exagerada para sua privacidade.

Jonas passou quase dois dias seguidos na base de café e energéticos, e sua idade já não o permitia dar-se ao luxo de não dormir sem sofrer com as consequências. As olheiras profundas tiravam o brilho de seus pequenos olhos azulados, e ele piscava forte, quase deixando-se ser abraçado pelo conforto dos sonhos ali mesmo, sentado na poltrona de couro posicionada bem no centro de seu quarto, virada na direção do quadro negro ocupando metade de toda uma parede.

O jornalista tinha ombros tensos, o suor abafado do calor de um quarto fechado fazia gotículas pela sua pele marcada pelo tempo. O ventilador nem surtia tanto efeito mais, não fazendo mais do que balançar de leve os pelos grossos e já acinzentados de seu peitoral quadrado. Seus olhos estavam fixos no quadro, já fazia algumas horas, enquanto o homem juntava as mãos abaixo de seu queixo, batendo indicador contra indicador num movimento nervoso de quem permanece reflexivo.

Dividida em três partes, as pistas não demonstravam nenhuma conexão lógica, mas o homem sentia que tudo aquilo estava interligado. O desaparecimento dos adolescentes, as atividades secretas da clínica farmacêutica [que para ele, de farmácia não tinha nada] e os relatos de avistamentos de luzes misteriosas voando pelos céus de Bonito.

Fazia até sentido, para um jornalista, investigar sobre desaparecimentos; e também era curioso e tinha certa lógica procurar saber sobre avistamentos de objetos não identificados pela cidade; mas não havia nada além da intuição para que Jonas se aprofundasse em suas pesquisas sobre a clínica multimilionária que [do nada] se instaurou numa cidade pequena no interior de Minas Gerais. E era justamente as coisas da clínica que mais atiçavam a curiosidade inata do quarentão solitário.

Ele tinha o olhar vidrado no novo recorte, colado bem ao centro do quadro negro. O recorte era dos termos de uso de um aplicativo de produção e publicação de vídeos curtos. Mais exatamente o seguinte trecho:

"Ao criar minha conta e vincular meus dados neste aplicativo, abro mão do meu próprio domínio sobre meu cérebro e meu corpo, autorizando aos detentores de direito deste aplicativo o uso total de meu cérebro e meu corpo, para quaisquer finalidade que desejarem".

Isso, claramente, tinha letras miúdas, em um cinza fraco que quase desaparecia entre tantos outros termos de aceitação mais comuns, como o uso de cookies e o acesso à dados privados.

Esse recorte tinha barbantes que interligava nas fotos dos [agora] seis adolescentes desaparecidos. Também ligava ao sobrenome Mattos, que era do cientista-chefe da empresa farmacêutica, e também o do programador do aplicativo [M.M-Mattos]. Alguns barbantes levavam a prints impressos colados entre a coluna da farmácia e a coluna de OVNIs, com partes de vídeos na tal plataforma que tinham quaisquer tipo de luz flutuante ao fundo.

"Isso deve ser só uma piada de programador", Jonas relembrava das palavras cuspidas de forma nervosa do editor-chefe do jornal, "para de viajar, Jonas! Como um aplicativo vai dominar o cérebro de uma pessoa?"

Refletindo solitário sobre tais questionamentos, o homem piscou mais forte. Abriu os olhos lentamente, sentiu a cabeça pesando pro lado.

— Três da manhã-- — sussurrou, conferindo as horas no seu relógio de pulso. — Melhor descansar um pouco, já falando sozinho.

O homem nem viu direito, mas ele se levantou, desafivelou o cinto que lhe apertava a pancinha, e enquanto se guiava em passos desajeitados para a cama, deixava a calça cair pouco a pouco, ficando apenas com sua cueca e meias. Jogou-se na cama já enfiando a cara em meio à dois travesseiros, e apagou.

P.P.P. - Projeto: Pode piorar?Where stories live. Discover now