Tiquim

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A rua estava vazia de gente, mas completamente dominada pela áurea do perigo. Tiquim sentia isso, já há algum tempo, e isso o irritava bastante. Não gostava da ideia de ter sua privacidade invadida para o divertimento alheio — que tipo de idiota fica assistindo um pobre cachorrinho fazendo suas coisas e se divertindo com isso? — pensava ele.

Ele caminhava quase trotando pelo asfalto, suas unhas grandes e pretas faziam um barulhinho típico de trec trec, a cada passo. Parou para bebericar um pouco de uma poça de água no canto entre asfalto e meio-fio, e voltou sua caminhada balançando o cotoco de rabo no ar.

Tiquim estava atrasado, ele sabia disso, mas não tinha pressa. As reuniões de bairro eram sempre bem chatas, e ele não tava com muita paciência para as mesmas coisas de sempre. Ele sabia muito bem suas tarefas, era excelente em perseguir motoqueiros, tinha uma cara super-fofa e carismática ao pedir comida, e sempre cheirava rabos alheios com cuidado — [Coisa que o Pretinho não faz!] resmungou para si próprio em pensamentos.

Ao dobrar a esquina da rua de Jonas e dona Odete, Tiquim avistou a gangue de cães já na pracinha, reunidos num semicírculo propositadamente desordenado.

Tiquim chegou, cumprimentou a todos com uma fungada bem de leve, e deixou ser cheirado também, xingando Pretinho ao sentir o focinho do vira-lata encostando onde não devia.

[Enfim, podemos começar] — Belinha disse por telepatia canina, já em sua posição de liderança, tomando a frente do grupo.

A cadela era uma meia-poodle bem velha, os pelos, antes brancos, agora tinha uma coloração amarela, que beirava ao alaranjado. Tinha um olho branco, o outro já com uma bolinha também branca, e as orelhas enormes caíam com uma pelugem desajeitada para todos os lados.

[Como já sabem, nossa simplória e pacata Bonito foi escolhida para ser palco de um programa de péssimo gosto pelos E.Ts de outra dimensão] — Belinha deu início à reunião. — [A gente até achou divertido de início, mas o trem tá ficando feio!]

[Sim!], Bolota exclamou no seu típico tom resmungão [Meu beco está cheio de aparições e poltergeists, péssimo gosto! Eles me flutuaram no ar por quase duas horas anteontem, me jogando pra todo lado! Um absurdo!]

[Um absurdo mesmo! Credo!] — Estrelinha exclamou, chocada com aquilo.

[Isso não é nada! Eu fui perseguido por baratas gigantes essa noite!] — Pretinho choramingou.

Tiquim revirou os olhos, cansadíssimo da presença de Pretinho na reunião. Além de cheirar suas partes de forma invasiva, Pretinho era um chatão narcisista!

[Isso não me assusta, na real] — foi a vez de Brutus, um cachorrão grandalhão que tinha sangue pastor alemão, — [o problema mesmo são os zumbis! Olha lá!]

Os cachorros viraram-se todos para a mesma direção, observando um grupo de adolescentes zumbis dobrando a esquina da praça. Os zumbis caminharam meio tortos, mancando, de forma desajeitada faziam uma coreografia sincronizada de passinhos de dança — levando as mãos pra lá e pra cá e balançando os quadris a cada passo.

[Que merda é aquilo?] — Tiquim fez menção de rir, mas a seriedade estampada na expressão canina dos demais fez com que o vira-lata se segurasse.

[É,] — Belinha balançou a cabeça, tombando-a de lado levemente e permanecendo assim por um tempo. [Temos uma escolha a ser feita...]

[Eu não quero dividir espaço com zumbis dançarinos não!] — Brutus se pronunciou com clara indignação.

[Nem eu!] — Bolota exclamou de forma exagerada.

[Cês tão falando sério?] — Princesa, uma cadela magricela cor-caramelo virou-se pros cachorros, num tom de desdém.

[Cê quer?] — Belinha virou-se pra Princesa.

[É um programa de TV, gente!] — a cadela falou com claro ânimo — [Podemos ficar famosos!]

[E morrer!] — Pretinho respondeu em horror.

[Credo!]

[Eu não quero morrer não!]

[Nem eu!]

Os cachorros começaram uma discussão fervorosa.

Não muito longe, os zumbis encontraram um grupo de pessoas paradas num ponto de ônibus. As pessoas não deram muita moral antes, pois acharam ser alguma brincadeira ou uma gravação daqueles vídeos virais de monte de gente dançando na rua — pessimamente vestidos de zumbis —; então foi uma gritaria danada quando os zumbis chegaram perto o suficiente para começar a carnificina. Tripas e sangue e gritos de horror compunham a cena no ponto de ônibus — metros adiante da reunião canina.

[O trem tá feio ali, cês tão vendo né?] — Tiquim apontou pro ataque de zumbis com o focinho.

[Não temos muito mais tempo...] — Belinha tomou sua postura de liderança — [Vamos deixar Bonito, hoje, agora? Ou vamos continuar aqui?]

[Eu voto pra dar na pata!] — Bolota logo disse.

[Também quero ir embora] — Pretinho choramingou num tom bem dramático.

Outros cachorros também concordaram em ir embora.

[Sozinha eu não fico!] — Princesa revirou a cabeça.

[Mas gente,] — Tiquim olhou pros companheiros — [as pessoas aqui precisam da gente. Podemos ajudar!]

[Então você quer ficar?] — Belinha olhou pra Tiquim, surpresa.

[Bem, a Princesa também!] — Tiquim olhou pra vira-lata esperançoso.

[Eu não! Sozinha? Jamais!]

[Mas eu...] — Tiquim não continuou, optando por não se humilhar ainda mais com o claro despeito da cadela.

[Tiquim, é muito nobre de sua parte...] — Belinha disse, olhando carinhosa pro cachorro. — [Espero que fique bem!]

[É O QUEEEÊ?]

Antes então do cachorro ter tempo de qualquer coisa, Belinha brilhou, e com ela, todos os outros vira-latas também reluziram num mesmo tom meio rosa-choque. Então eles todos os cães se teletransportaram, deixando apenas Tiquim sozinho na praça.

[Mas que filhos da p--]

Os zumbis dançarinos terminaram a refeição no ponto de ônibus, e foram atraídos pela luz cintilante do teletransporte canino, voltando os seus olhares pro cachorro caramelo parado sozinho em meio a praça.

Tiquim viu ser visto pelos zumbis, e balançou a cabeça em negação. O cachorro não esperou para saber se zumbis gostavam de carne animal, rapidamente saindo dali numa corrida frenética xingando todos os palavrões que conhecia em sua fuga.

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Capítulo curtinho, mas que eu amei escrever. Espero que tenham gostado da leitura!

P.P.P. tá sendo um livro que eu tô curtindo muito escrever, o processo criativo desse livro é um trem bem divertido, a vibes Weird da história é algo novo pra mim, tô me descobrindo num gênero novo, numa proposta nova, e tô adorando essa parte criativa do rolê... Eu torço para que seja divertido também a leitura dessa história.
Já sabem, feedbacks são sempre bem-vindos! Compartilhar aqui suas impressões me ajuda a melhorar a história 🌈

P.P.P. - Projeto: Pode piorar?Where stories live. Discover now