Capítulo 61 - Serotonina

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~Kieran

Passei tanto tempo acreditando que a clínica de reabilitação fosse uma espécie de amostra do inferno na terra, mas me surpreendi quando me dei conta de que não é nada disso. Talvez só um pouco entediante.
Não tenho pressa, mas quero muito ir embora. Sinto que tenho toda uma vida lá fora esperando por mim, depois de todo esse tempo me escondendo atrás de uma pessoa que nunca fui de fato...
Posso finalmente dizer que nunca estive tão tranquilo com a pessoa que sou, depois de fazer as pazes comigo mesmo e me perdoar por tudo o que hoje sei que nunca foi a minha culpa. Afinal, cada dia é uma nova chance de escrever uma nova página dessa história. Essa história que é minha, mesmo eu não sendo a pessoa mais interessante do mundo... isso nunca vai ser sobre um relacionamento que não deu certo ou um abuso sexual que quase tirou a minha vida. Eu acho que o que tenho sentido por mim mesmo ultimamente supera qualquer um desses assuntos. Me sinto orgulhoso.

As vezes fico de saco cheio por estar preso aqui, mas a decisão de vir para cá foi minha, de qualquer forma, e o tratamento é caro pra caramba, então desistir não é uma opção.

Caminho pelos corredores de paredes brancas e entediantes, de volta para o meu quarto para terminar as atividades em abundância que o colégio tem me enviado, depois de um passeio na sala de recreação pra cumprimentar todo mundo. Posso ouvir a minha música favorita; Oblivion, de Grimes, ecoar por todos os cantos, eu exigi que tocassem todo dia e o meu pedido foi atendido. Pode parecer, mas não é como se aqui fosse uma prisão. Tá mais para um spa, ou retiro espiritual. Tipo, a gente não tem acesso a celulares, TV, computadores, visitas (e até espelhos). Quase nenhuma influência externa, além de cartas. Isso significa que se o mundo começar a acabar, seremos os últimos a saber. Pensei nisso nos primeiros dias e fiquei meio desesperado. Mas logo depois da terceira noite, eu me dei conta de que não foi o pensamento, e sim crises de abstinência. Eu já as tinha em casa, mas inventava qualquer inquietação para justificar.
Agora, estou bem melhor, e isso já não acontece mais com tanta frequência.

Quando chego ao quarto, dou de cara com Ash sentada na minha cama. Ela sorri assim que me vê, e eu faço o mesmo. Eu estava com tantas saudades, que acho até que aconteceu um milagre e permitiram uma visita.

Nos abraçamos, o que dura alguns minutos.

-Como você está? minha nossa... eu juro que se não me deixassem te visitar, eu ia dar um jeito de invadir!-Diz, voltando a sentar na cama. Eu espero que tenha muita coisa para contar, pois eu estou pronto pra ouvir tudo. Devo ter perdido muitas novidades do mundo lá fora.-Olha... eu já consigo até ver a cor verdadeira do seu cabelo... e você tá com a mesma carinha de antes de tudo... tá até corado.

Arrasto uma cadeira, colocando-a na sua frente para me sentar. Acredito no que diz emocionada... tem um tempão que não vejo o meu próprio reflexo.

-É... eu até que tenho dormido.-Digo.

-Esses três meses te fizeram muito bem.-Comenta. Minha cara de espantado diz que parecem ter passado anos.

Acho que acabei perdendo um pouco da noção do tempo, mas isso não começou quando vim pra cá. Eu já não me importava havia um bom tempo. Mas também não me importava em perceber isso.

-E você? como tá? me conta!

-Com saudades!-Diz.-Ah, e bem mais tranquila, por já ter resolvido todo o lance da faculdade. Já tô até conseguindo dormir a noite.-Ri.-E você? o que anda aprontando?

Penso. Tenho feito bastante terapia, porém ainda não é o momento de falar sobre isso. Na semana passada, quase aprendi a fazer crochê, mas meio que não é muito o meu estilo. Até que curti o lance de pintar quadros. O pessoal medita quase todo dia por aqui, eu tentei participar uma vez, mas também não funcionou. Entre as outras coisas... bom, acho que nada de interessante mesmo.

-Tenho certeza que lá fora tá bem mais legal.-Digo.-E a Sofia? O Jake? como eles estão?

-Bom... o Jake e a Brianna estão apaixonados, pelo que eu fiquei sabendo. já estão até planejando morar juntos.-Dá de ombros.-E a Sofia... bem, nós estamos conversando. Ela me faz companhia quando sinto a sua falta... não estamos com pressa.

Processo todas as informações. Jake e Brianna? eu nunca que ia imaginar, mas isso tem tudo pra dar certo, sem sombra de dúvidas. Eu desejo o máximo de sorte para os dois. Que ele possa finalmente encontrar o que possa chamar de amor... e ela também. Sobre Sofia e Ash, tudo vai se encaixar uma hora, se tiver de acontecer, então não vejo motivos para me preocupar.

-Acabou por aí?-Questiono, ainda interessado em saber mais.

Suspira, mexendo a cabeça negativamente. Espero uma notícia ruim quando faz isso.

-Ele disse que estava preocupado com o seu sumiço... aí eu precisei contar que você tinha vindo para a clínica...

Imediatamente, entendo que fala sobre Nick. Talvez ela nem saiba o que aconteceu. Talvez eu nem conte. Como eu disse antes, essa história não vai ser sobre um relacionamento que deu errado.

Aponto para a lixeira no canto da sala, cheia de papéis amassados. Todos cartas suas. Acabei abrindo a primeira, sem ao menos ver o nome do remetente, começava com ele dizendo que estava se sentindo culpado. Tendo lido somente uma frase, a descartei.
Ele enviou mais. Uma a cada semana.

-Peraí, é sério? sério mesmo?-Questiona, me deixando confuso.

-O que?-Pergunto.-Não me diz que tem mais uma novidade...

Ri.

-Na verdade, sim. Você esqueceu do seu próprio aniversário de dezoito. Agora já pode criar um pouco mais de juízo pra não acabar na cadeia, né?-Revela, me deixando surpreso de imediato. Eu nunca que ia fazer ideia. Pelo visto, eles levam muito a sério esse negócio de ignorar o mundo lá fora aqui dentro.-Porra... se você soubesse o quanto foi difícil convencer esse pessoal a te liberar hoje...

-Como assim? então eu tô livre por hoje? vou poder, tipo, ir em casa?

Assente devagar.

-Mas saiba que eu não vou tirar os olhos de você nem por um instante.-Diz, séria, porém, mostra um sorriso logo em seguida.-Tem um bolo imenso esperando por você. Ah, e eu acho que ninguém vai te reconhecer... sério, você não tá nem um pouquinho estiloso... parece que foi exorcizado.

De repente, os meus pensamentos estão falando mais alto do que Ash, enquanto me conta mais algumas novidades com uma tamanha empolgação.
Vou voltar pra casa, mesmo que só por algumas horas, porque depois tenho que voltar pra cá e só deixar esse lugar quando sentir que nunca mais quero ver droga nenhuma na minha frente. E pelo que a minha força de vontade diz, isso não vai demorar.
Me pergunto se me sinto pronto para voltar pra casa... onde vivenciei os meus piores e melhores sentimentos. Todas as memórias esperando por mim lá, para então voltarem com força e talvez me fazerem questionar se já estou fortalecido o suficiente para encará-las sem precisar recorrer a qualquer substância que me deixe fora do ar.

Lembrar de quando amei, de quando odiei, de quando chorei... eu me sinto pronto para voltar. Quero ver os meus amigos, quero me olhar no espelho e me deitar na minha cama... a minha verdadeira cama. Dessa vez, sozinho e contente, pois a minha própria companhia nunca foi tão importante, para mim.
Levanto-me, caminhando até a janela. Abro as cortinas de vez, antes nunca abertas por mim. Vejo o azul no céu do vasto mundo lá fora. Isso me faz querer sorrir.
Não preciso injetar nada nas minhas veias ou ingerir qualquer comprimido para sentir a serotonina, por isso, sorrio.

-Eu tô... tão feliz.-Digo, emocionado. E o mundo sorri de volta pra mim.

Esse mundo que, depois de tanto tempo, volto a me sentir capaz de conquistar.

Eu Te Odeio!Onde histórias criam vida. Descubra agora