Capítulo 4

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Separamos as compras entre todas as oito mãos (Ben fez questão de carregar os sacos de gelo, a fim de exibir seus bíceps) e seguimos em direção ao nosso esconderijo favorito na cidade: a casinha abandonada no farol.

Corria um boato pela cidade de que a casa era amaldiçoada. Muitos pais adoravam contar aos filhos a história do homem que morava ali havia cem anos, o Guardião do Farol, que era muito mal-humorado e vivia solitário naquela casinha, até que teve um ataque do coração e morreu ali mesmo, deixando que seu espírito vagasse eternamente por aqueles cômodos, a fim de impedir que desordeiros (nós) a invadissem para fazer baderna.

Anos atrás, havíamos nos aventurado a descobrir se essa casa era mesmo amaldiçoada. E não, não era. Mas era suja, embolorada e cheia de poeira, fora que era uma espécie de parque de diversões para ratos, e as toras de madeira que sustentavam a construção pareciam sempre muito precárias. Talvez o conto do Guardião do Farol tivesse sido inventado por pais preocupados, que tinham medo que uma dessas toras caíssem na cabeça de seus filhos, caso eles decidissem ir lá brincar.

Nós sempre arrumávamos a casa no início do verão. Varríamos, passávamos pano, trocávamos remédios contra ratos e insetos. Continuava sendo uma casa abandonada, sem energia elétrica ou água encanada, mas pelo menos não despertava crises de rinite ou leptospirose.

A caminho do nosso esconderijo, eu e Dora andávamos um pouco mais à frente dos meninos. Conversávamos sobre banalidades, quando um temível assunto acabou vindo à tona.

— Estou nervosa com os resultados. Sabe, do vestibular — estava dizendo Dora. — Saem apenas no fim de janeiro. Por que não liberam logo os nomes dos aprovados? Não me aguento de ansiedade, e olha que nem sou ansiosa...

— Por que está tão preocupada? É claro que você vai passar!

Ela sorriu, modestamente, mas nós duas sabíamos que era verdade. Dora era uma ótima aluna, sempre muito bem disciplinada e com um plano em foco: se formar psicóloga. Fazia mais de dois anos que eu a ouvia falar em sua grande vontade de estudar psicologia, ao que parece em uma faculdade bastante disputada. Não me lembrava qual faculdade e não iria perguntar naquele momento (não queria ser aquela amiga que esquece coisas importantes como essa. Mesmo que, aparentemente, eu fosse). Devia ser alguma faculdade em Teófilo Otoni, sua cidade, ou talvez em Belo Horizonte. Mas era um plano que ela parecia muito determinada a seguir. Além do mais, fazia sentido: psicologia tinha tudo a ver com Dora.

Por alguns minutos, só falamos sobre isso. Como ela sem dúvida seria aprovada, como seriam as aulas, como ela estudaria Freud e Jung, como ela mal podia esperar para analisar cada membro da sua família em segredo. Dora seria uma ótima psicóloga. E uma bem cara também.

— Aliás, o que você vai estudar?

Ela soltou assim, de repente. Até consegui sentir o meu semblante ceder à gravidade. Pigarreei e fingi que não tinha escutado.

— Ah, droga — parei na rua, modelando uma expressão de preocupada. — Acho que minha menstruação desceu. Olha o meu short pra mim?

— Nossa, claro...

Dora postou-se atrás de mim e olhou discretamente, em sua comum delicadeza. Enquanto ela me garantia que não havia nada sujo no meu short, eu maquinava na tentativa de pensar em um novo assunto a iniciar, de forma que o anterior não retornasse à nossa conversa.

— Que alívio, obrigada. Ei, esse ano eu completei dois anos no curso de francês!

Não era lá o melhor assunto, mas pareceu funcionar por alguns minutos. Dora ficou feliz em ouvir isso, já que vivia me incentivando a estudar essa língua que eu tanto gostava. O assunto da faculdade que eu não faria carbonizou e desapareceu.

Um Retrato De VerãoWaar verhalen tot leven komen. Ontdek het nu