Capítulo 01 - A tristeza me destrói, e eu não quero ser destruída

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Existem fatos, momentos e lembranças inesquecíveis na vida de uma mulher. Minha boneca predileta é uma dessas lembranças. Não lembro quando ganhei, só não consigo esconder o sorriso que toma o meu rosto, quando revejo a Cacilda naquele baú de madeira que foi da vovó.

Sim, eu tenho mais de trinta anos e ainda guardo a minha boneca predileta. Ela está com a face completamente riscada de pincel, resultado de uma tentativa frustrada de maquiá-la, mas eu ainda acho a Cacilda um dos brinquedos mais lindos que eu já tive.

Só larguei a bichinha de mão quando comecei a reparar mais nos meninos e menos nos brinquedos, mas mãinha a manteve bem guardada, e me devolveu quando eu me casei. Encho os olhos de lágrimas quando abro o baú que herdei da minha vó, e encontro a Cacilda. Os mesmos olhos pintados, a mesma roupinha azul e branca de marinheira, o mesmo cabelo preto encaracolado.

A primeira menstruação também foi inesquecível, horrível, porém inesquecível. Depois algumas pessoas acostumam, e passam a considerá-la como um marco em suas vidas, mas para mim não foi nada disso, foi aterrorizante e assustador.

Depois veio o primeiro beijo. Ridiculamente terrível! Uma das coisas que eu apagaria da minha memória se pudesse. Foi tão ruim que nunca mais olhei na cara do dito cujo.

Após algumas tentativas frustradas, veio o primeiro namorado.

Ah, o primeiro amor!

Faz a gente acreditar que tudo é possível e que o mundo é cor-de-rosa. Nos leva ao céu, e ao inferno logo em seguida, porque, depois do primeiro amor, todos sabem que vem uma desilusão, uma baita decepção, quase irrecuperável, pelo menos para o trágico universo adolescente.

Ah, tem também a primeira vez. Mas devo confessar que para mim não teve essa importância toda. Não pensem mal, não fui daquelas que encheu a cara, deu para qualquer um e não se lembra de nada. Apesar de eu não lembrar mesmo de todos os detalhes. Mas é porque a primeira vez só causa ansiedade, desconforto e dor, não tem simplesmente nada de bom. O que eu lembro, e que nunca vou esquecer, é do meu primeiro orgasmo, nossa, esse sim é digno de um prêmio!

Existiram outros momentos importantes, como quando passei no vestibular, ganhei meu primeiro carro, me casei, e por aí vai.

Mas o que me marcou mesmo foi o nascimento da minha filha, minha bonequinha de verdade, meu pedacinho do céu, minha razão de viver.

Quando a Flávia nasceu tudo e todos perderam importância diante dela. Eu me tornei mãe. Tinha um serzinho minúsculo dependendo de mim. Mudei da água para o vinho. Passei a ser uma pessoa diferente, minhas prioridades mudaram. Nessa época, tudo ganhou um novo contorno e um novo significado. E ser mãe não é nada fácil como pintam, principalmente quando você é uma mulher que ama o seu trabalho e que não consegue ficar longe dele.

Mas agora, eu tenho outro marco na minha vida, e isso me dá motivo para ter raiva. Raiva do Miguel, de mim, e do meu trabalho. Porque eu acho que foram esses três fatores que mataram o meu filho. O bebê que nem havia saído de mim. E pior, que eu não sabia sequer que existia.

Que ótimo! Não basta ser corna, ainda engravido do marido numa das raras vezes em que dormimos juntos, e perco o bebê antes mesmo de descobrir que essa nova vida pulsava dentro de mim.

Tá explicado o porquê de tanta fúria?

Eu preciso de espaço. Preciso de distância. De tudo e de todos.

Quero ficar longe do Miguel e esfriar a cabeça, pois na situação em que eu estou, sequer tenho como conversar. Quero sossego também, e para isso, eu tenho de ficar longe da minha família e dos seus palpites. Não estou nem um pouco disposta a ouvir conselho de quem quer que seja. A única pessoa que eu quero por perto é a minha filha. Mais ninguém.

Confissões de HeloísaDonde viven las historias. Descúbrelo ahora