1. ALÉM DE UM OLHAR

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Senti meus dedos deslizarem sobre as teclas do piano, fazendo com que a melodia doce e bela ecoasse por toda a sala. O seu som se misturava aos das gotas grossas da chuva que insistem em cair do céu. Com os olhos fechados e sendo embalada pela música, me permiti balançar levemente o corpo, sentindo a empolgação na pele.

"Não é possível que ela toque de forma tão intensa assim."

"Depois que decora as notas até eu faço igual."

É impossível não me lembrar das palavras grosseiras e do quanto fui julgada ao tentar tocar os primeiros acordes no piano. Muitos não acreditaram no meu esforço e os seus desprezos me fizeram sentir inútil ao ponto de desistir de aprender a tocar. Outros me julgavam achando que por minha debilitação eu deveria ficar no meu canto, parando de querer aprender coisas novas, caso contrário acabaria me acidentando.

Ouvi ainda de longe os passos do andar da minha mãe sobre o seu salto, seu caminhar leve e sem fazer muito barulho denunciam que ela está se aproximando de forma cautelosa, sempre foi assim. Essa foi uma das maneiras que Grace encontrou para chegar próximo a mim sem me assustar.

— Não sabe o quanto me orgulho em te ver dedilhando as notas com tanto entusiasmo, — disse com um tom de voz meloso.

Arrisco-me a dizer, sem dúvidas de errar, que os seus olhos estão marejados mostrando estar emocionada ao me ver tocar no piano novamente.

Parei de tocar ao sentir ela se aproximar ainda mais e repousar sua mão sobre meu ombro direito dando um leve afago.

— Está indo tão bem filha, mas vim atrapalhar, — segurou meu queixo e deu um beijo em minha testa. — Pedi a Susan que preparasse um bolo de laranja com calda de chocolate, o seu preferido.

Como se tivesse ganhado na loteria, abri o meu maior sorriso ouvindo o gargalhar da minha mãe.

Por incrível que pareça e mesmo diante das dificuldades que essa estação traz, eu amo o inverno com sua neve congelante e uma boa lareira para me manter aquecida. Quando criança sempre comia bolo de laranja com calda de chocolate nos dias mais frios, lembro de me lambuzava com toda a calda enquanto ouvia minha mãe contar histórias sobre minhas princesas preferidas.

— Sua companhia é sempre bem-vinda, — deixei minhas mãos sobre o colo. — Como adivinhou que eu estava querendo um bolo? — Perguntei curiosa.

— Digamos que criei uma formiga que ama bolos e chocolates — rimos juntas. — Finalmente uma tarde agradável sem apresentações, correria ou flashes. — Senti ela largar o meu queixo e se afastar lentamente.

Os últimos meses foram resumidos em dançar até sentir meus calos doerem na turnê que realizei pelos teatros de Londres, apresentando uma releitura do clássico Quebra-Nozes. Confesso que dessa vez me senti mais nervosa do que antes, mesmo que eu não possa contemplar os meus fãs me aplaudir de pé com palmas e assobios, pude sentir do palco toda a sua energia. Cheguei a me arrepiar por inteira, eufórica, senti meu coração intensificar as batidas me confirmando mais uma vez que escolhi a profissão certa, vivendo daquilo que amo fazer: dançar.

Quando mais nova amava dar piruetas pela sala e vestir minhas bonecas como bailarinas, mamãe como sempre me aplaudia de pé sentindo orgulho da pequena mirim que não fazia ideia da proporção que seu nome tomaria e do lugar onde chegaria hoje, mesmo com uma grande limitação, ser cega.

Nada no início é fácil, ainda mais quando se tem uma realidade à sua frente totalmente diferente de tudo o que já vivenciou. Admirar o entardecer no lago aos fundos do quintal, ver os pássaros voarem, tudo se tornou em uma grande neblina escura, sem cor, sem vida. A experiência de acordar sem poder ver é uma das mais horripilantes, traumáticas e assustadoras. O desespero me assolou no momento em que abri os meus olhos e percebi que a beleza de contemplar, o privilégio de enxergar, me fora tirado.

Faça Com Que Eu Veja (DEGUSTAÇÃO)Where stories live. Discover now