Ƭ𝚛𝚒𝚋𝚘 𝚍𝚘𝚜 𝙰𝚗𝚓𝚘𝚜 𝙲𝚊𝚒𝚍𝚘𝚜

0.3

▓▓▓▓▓▓▓▓▓▓▓█ Acesso permitido █

╰────1058 palavras

⎯⎯  Tu tá confundindo as coisas, menina. ⎯⎯  grunhe o cozinheiro. ⎯⎯  Cada um de nós foi roubado por esse filho de uma fosfurta².

⎯⎯  Eu devolvi tudo! ⎯⎯  manifesta-se Q.

⎯⎯  Claro que devolveu. Em CEBOLAS!

⎯⎯  Ei, ei, calma, todo mundo! ⎯⎯  Cha ergue as palmas das mãos. ⎯⎯  Se devolveu, devolveu.

⎯⎯  E o quê que eu vou fazer com uma centena de cebolas?

⎯⎯  Uma centena de fritadas? ⎯⎯  Q sugere, inocente.

Com um brado impaciente, a mulher da esquerda avança com uma soqueira de metal em riste. Mira e desfere um golpe com toda sua força, mas não demora para ir parar no chão com a marca do chute descalço de Cha e uma pungente dor no estômago.

⎯⎯  Boa! Essa é a Cha, seu abusados! Vocês não têm chance! ⎯⎯  comemora Q.

⎯⎯  Esse chute até que foi bom, mas... ⎯⎯  admite o cozinheiro, com algo como medo no olhar. ⎯⎯  Acontece que... Espera... Calma um segundo... Cê disse Cha? Tipo, Cha Hi Warren, a pior lutadora da Guilda? Cha Hi Warren, a vergonha de Judah?

⎯⎯  Nunca nem vi. ⎯⎯  responde a garota, tapando a boca de Q. ⎯⎯  Agora, deixem a gente ir embora ou eu vou acabar com a raça de vocês.

⎯⎯  Ah, vai? Escuta, a gente tá de saco cheio de vocês, lutadores, no ameaçando. Acham que são melhores do que agente, que podem ficar falando o que a gente tem que fazer, comer, quando ficar em casa ou não. Já tamo de saco cheio!

As pessoas em volta concordam, selvagens. O que quer que estejam passando esses tempos, estão prontos para descontar em Cha.

⎯⎯  Cha, usa sua espada! ⎯⎯  sussurra Q.

Num reflexo, a mão dela vai até a mesma, parando há poucos centímetros de sua superfície. Ela fita, imóvel, o punho coberto por escamas escarlate, que sobem pelo cabo de trinta centímetros como uma serpente cor de sangue arterial e culminam numa guarda quadrangular, simples e preta, a mesma cor da bainha de oitenta centímetros que esconde a lâmina. A arma devolve o olhar junto a uma silenciosa ameaça: a de roubar a sanidade de sua dona.

⎯⎯  Tá esperando o quê? ⎯⎯  Q puxa a blusa da garota. ⎯⎯  Eles tão vindo, Cha!

Ele não precisa falar isso. A sede de sangue é perceptível. Mas Q continua chamando por sua salvadora paralisada. Estarão fritos (alguém acendeu fogo em uma garrafa) se Cha não tomar sua decisão logo.

⎯⎯  Ok, tá bem. Eu entrego ele. ⎯⎯  Ela dá de ombros quando Q arregala os olhos para ela, incrédulo.

⎯⎯  Boa escolha. Agora, se manda. ⎯⎯  diz o cozinheiro.

⎯⎯  Podem me dar um espaço nessa sua roda da morte?

A contragosto, as pessoas dão abertura para Cha sair. Ela agradece e dá um passo na direção da vida normal. Subitamente, agarra a garrafa em chamas e joga no chão, espalhando o fogo ao redor. Com a mesma mão, então, segura o pulso de Q e dispara na direção das ruínas da extratora de gás natural.

Não vira para vê-los os seguir e nem para verificar se Q está conseguindo acompanha-la, nem mesmo vigia o caminho que toma. Na verdade, seus olhos apontam para mais acima. Assim que avista o que esperava, sobe Q às costas e o joga por cima da cerca, escalando-a num salto logo em seguida. Os restos da extratora são basicamente um amontoado de estruturas metálicas como torres, semelhantes à Torre Eifel. Assomam-se como um gigante das histórias de Don Quixote. Sem perder tempo para responder Q sobre o que diabos estão fazendo, Cha o ajuda a começar a subir numa das torres enquanto seus perseguidores se esforçam para passar pela cerca. Seu corpo inteiro dói, mas a lutadora continua subindo e subindo e subindo. Sobem tanto que alcançam a ponta da torre, onde a vista atinge Cha tão em cheio quanto a brisa intensa. É possível ver tudo dali, desde as Colinas de Metal, a cadeia reluzente de montanhas no horizonte, até as cinco faixas de terra e concreto que mergulha no Rio Sul, semelhantes a dedos do pé. Sua casa está inegavelmente longe.

Ela se pergunta se a Guilda tem mesmo todo esse senso de humor de a ter enviado para tão longe da arena. Mal sabe.

O vento bagunça mais o cabelo da garota e o capuz de Q à medida que se posiciona na ponta da torre. Às costas da dupla, a Planície Dourada de Judah, só não tão grande quanto a de Joseh. Contrasta perfeitamente com a megalópole de cimento e cibertecnologia à frente. Seu nome é Cardio, o coração da Tribo de Judah, e, erguendo-se imponente acima do imenso prédio branco no centro da cidade, está Ahead, o bairro flutuante, sonho de consumo de todo mundo, incluindo da própria Cha.

⎯⎯  Beleza, chega de curtir a paisagem. ⎯⎯  De sua bolsa, a lutadora tira um rolo de corda translúcida.

⎯⎯  Eu... não quero me repetir, mas... ⎯⎯  Q diz incerto enquanto ela amarra o nó em sua cintura. ⎯⎯  O que tá fazendo, cara?

⎯⎯  Pegando uma carona até Dedos, cara.

O som de hélices metálicas vai ficando mais e mais alto. Quando olham na direção de Ahead, avistam ele: um dirigível prateado tatuado com o leão da bandeira de Judah. Na superfície lateral, o vídeo de uma propaganda do novo Me-Arm B-99, o mais recente lançamento da Vulcanus.

⎯⎯  Espero que ainda não tenham consertado. ⎯⎯  Cha comemora internamente quando avista o cabo de aço balançando perigosamente abaixo do dirigível. ⎯⎯  Ah, o bom e velho descaso com a propriedade pública! Vem, menino.

⎯⎯  Não sou um menino.

O som da espátula retinindo sobre o metal da torre chega alto aos ouvidos dos fugitivos exatamente quando Cha estica a mão para a corda. Juntos, Q e ela são içados para longe da turba de escaladores enfurecidos, com um cozinheiro gritando obscenidades atrás deles.

Cha ri internamente. O que falta acontecer em sua vida, afinal?

Ela olha para Q e ele sorri para ela. Ela grita em comemoração, viva pela primeira vez naquele dia. De alma preenchida pela euforia, ela quase não escuta seu fã a chamar, e mesmo quando finalmente lhe dá atenção e enxerga a espora, demora alguns segundos para entender do que se trata. Osso de frango. Tem um imenso osso de frango cravado nas costas de Q.

²Fosfurta= gíria gerada a partir da contração de "Fosfeto Urânico de Tântalo", resultado puramente hipotético da mistura de Fósforo, Urânio e Tantalo, ou seja, PUTa. Completamente ficcional.

Prévia do capítulo 0.4

Espantada, ela finalmente nota a mão esquerda do garoto, cuja luva tinha sumido. Os dedos eram fibra de carbono, as juntas de borracha e a palma de titânio.