CAPÍTULO 23

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Naquela noite, o mesmo sonho que teve nos primeiros dias em Velaris, voltou a ela. Começava com o breu, nada mais que silêncio e escuridão. Então, gavinhas de sombra se soltavam ao seu redor, deixando a vista um horizonte brilhante, nos tons mais variados de verde e marrom, que faziam-na pensar nas florestas exuberantes de seu reino. Os fiapos escurecidos enrolavam-se em seu corpo e de algum lugar, em meio a tudo aquilo, uma voz suave e melodiosa preenchia, aos poucos, o silêncio.

Seu corpo não existia, de fato, ali. Era mais como uma sensação, uma aparência corpórea na forma de milhares de labaredas negras e cinzentas, mas ela sentia. Cada toque das sombras, cada nota daquela canção chegando até ela e fazendo seu corpo vibrar e aquele arrepio de prazer e contentamento subir da base de sua coluna até a nuca.

Sentia a alegria daquelas gavinhas sombrias vibrando e ronronando como gatos. Sentia as chamas de seu "corpo" aquecendo e a embrulhando como um cobertor quentinho.

Essas eram as únicas coisas das quais se lembrou ao amanhecer, mas tinha a sensação de ser mais que apenas um sonho.

Começou a se perguntar se não havia lido romances demais nas bibliotecas de sua terra natal. Pois, talvez isso explicasse a forma como seu cérebro insistia em adicionar Azriel em seus pensamentos fantasiosos a todo momento. Ainda assim, ela sentia aquele toque quente, como ferro, em sua pele. O coração disparado ao amanhecer não era uma ilusão. E pareceu coincidência de mais -quando Lyra se aproximou da janela- encontrar o Mestre Espião parado do outro lado da rua. O corpo musculoso e alto encostado em um dos postes de iluminação.

A feérica se afastou até o outro lado do quarto, onde o macho não poderia vê-la andando de um lado à outro, questionando se deveria descer até a rua ou não.

Fez o mesmo caminho de vai e vem tantas vezes que deveria estar formando um buraco no chão do quarto quando finalmente se trocou e desceu as escadas.

Caso perguntassem, ela estaria apenas dando mais uma de suas caminhadas matinais...

Não as realizaria mais, no entanto, por um bom tempo. Não seria estúpida de sair mais uma vez sozinha e muito menos deixaria Graham sozinho mais alguma vez. Tinha sido idiota e egoísta em fazê-lo anteriormente.

As dobradiças da porta da frente -que pareciam sempre cuidadosamente lubrificadas-, surpreendentemente, escolheram aquele exato momento para ranger o mais alto que pudessem.

Talvez não tão alto a ponto de acordar os inquilinos que ali dormiam, mas com certeza haviam conquistado a atenção de certo Encantador de Sombras...

Com um acenar hesitante, Lyra comprimentou Azriel. Se surpreendeu, no entanto, quando este se colocou a caminhar em sua direção.

Foi um pouco involuntário, observar os músculos de suas pernas compridas se movendo a cada passo... Esperava poder culpar o ar frio da manhã pela pele -que deveria, provavelmente, estar- levemente corada.

- Bom dia, Lyra.

- Bom dia, Azriel.

Aquela situação era estranha. Um pouco constrangedora... Ela não pôde evitar uma risada,  que só aumentou quando Azriel se juntou a ela -bem mais comedido, mas, ainda assim, era encantador.

- O que estamos fazendo? -ela perguntou. A risada de ambos sumindo aos poucos.

-Como assim?

- Bem, evoluímos de apenas estranhos para estranhos que riem juntos em uma rua deserta ao amanhecer?

Azriel sorriu para ela e uau...

- Sobre isso... Acho que começamos da maneira errada. Então, eu vim...me desculpar ou algo assim.

- É, concordo com você: começamos errado. Aceito. Suas "desculpas ou algo assim" e...me desculpe também.

O silêncio se instaurou entre eles, mas não foi estranho, ela gostou de ficar ali com ele. Nada mais se ouvia além dos sons da cidade acordando.

Azriel parecia prestes a lhe dizer algo quando a porta atrás dela rangeu ao se abrir. Parado ali estava um garotinho de cabelo preto ondulado e olhos esmeralda como os dela, vestindo uma camisa de manga longa e calça de pijama.

-Ei, pequeno - disse Lyra, enquanto caminhava até o irmão - O que aconteceu?

Graham não lhe respondeu, apenas agarrou o tecido de sua calça e tentou puxá-la para dentro. As sobrancelhas franzidas e um biquinho nos lábios.

- O que foi, Graham? O que aconteceu?

Mais uma vez, ele nada disse. Foi então, que Lyra reparou os breves olhares que aprofundavam ainda mais aquela carranca.

Cada olhar zangado direcionado não a ela, mas a...Azriel?

O Mestre Espião parecia tão confuso com o que fazer quanto ela.

-Lyraaa - o irmão resmungou com uma vozinha chorosa, que a fez soprar uma risada curta.

Com um sorriso grudado no rosto, a feérica pegou  Graham em seus braços.

- Tudo bem, já vou entrar - aquela frase soou hesitante demais até para seus próprios ouvidos.

Queria entender, porquê nunca conseguia pouco mais que alguns minutos de interação saudável com Azriel e queria saber se ele pensava o mesmo ali, parado com sua máscara de indiferença de sempre. Os ombros erguidos e o olhar atento como se sempre esperasse encontrar problemas.

- Então, acho melhor eu... - a feérica apontou para atrás de si. Para dentro da estalagem.

- Sim, melhor você ir. - disse ele, se movendo um passo para trás- Nos vemos depois...talvez?

- Talvez...

Ela não se moveu. Ele também não. Pelo menos não até Graham murmurar algo e força-los a agir.

Mais uma vez ela viu Azriel partindo pelos céus de Velaris com aquelas asas encouraçadas. Mais uma vez, se viu arrependida por não conseguir trocar nada mais do que algumas palavras com ele, mas dessa vez, sentiu que talvez pudesse ser diferente...

O sol nem mesmo havia subido no céu por completo, mas ela sentia aquele quentinho reconfortante a aquecendo e confortando. Um pequeno cordão da cor daqueles raios dourados preso dentro de si.

Parecia um bom jeito de anunciar o início da manhã.

Em silêncio - e em um cantinho beeem escuro de sua mente- Lyra jurou a si mesma, que da próxima vez...Da próxima vez que visse o Encantador de Sombras, ela perguntaria a ele sobre aquele fio dourado.

Perguntaria se ele também o via e o que achava sobre aquilo. Da próxima vez, ela faria aquela e outras dezenas de milhares de perguntas que surgiram desde a primeira vez que o viu. Era uma promessa.

E todos sabem, que -para um feérico- promessa é divida.



Corte de Estrelas e SegredosOù les histoires vivent. Découvrez maintenant