ACOCORADA junto às pedras que serviam de trempe, a saia de ramagens
entalada entre as coxas, Sinha Vitória soprava o fogo. Uma nuvem de cinza voou dos
tições e cobriu-lhe a cara, a fumaça inundou-lhe os olhos, o rosário de contas brancas e
azuis desprendeu-se do cabeção e bateu na panela. Sinha Vitória limpou as lágrimas com
as costas das mãos, encarquilhou as pálpebras, meteu o rosário no seio e continuou a
soprar com vontade, enchendo muito as bochechas.
Labaredas lamberam as achas de angico, esmoreceram, tornaram a levantarse
e espalharam-se entre as pedras. Sinha Vitória aprumou o espinhaço e agitou o abano.
Uma chuva de faíscas mergulhou num banho luminoso a cachorra Baleia, que se enroscava
no calor e cochilava embalada pelas emanações da comida.
Sentindo a deslocação do ar e a crepitação dos gravetos, Baleia despertou,
retirou-se prudentemente, receosa de sapecar o pêlo, e ficou observando maravilhada as
estrelinhas vermelhas que se apagavam antes de tocar o chão. Aprovou com um
movimento de cauda aquele fenômeno e desejou expressar a sua admiração à dona.
Chegou-se a ela em saltos curtos, ofegando, ergueu-se nas pernas traseiras, imitando
gente. Mas Sinha Vitória não queria saber de elogios.
Deu um pontapé na cachorra, que se afastou humilhada e com sentimentos
revolucionários.
Sinha Vitória tinha amanhecido nos seus azeites. Fora de propósito, dissera
ao marido umas inconveniências a respeito da cama de varas. Fabiano, que não esperava
semelhante desatino, apenas grunhira: - "Hum! hum!" E amunhecara, porque realmente
mulher é bicho difícil de entender, deitara-se na rede e pegara no sono. Sinha Vitória
andara para cima e para baixo, procurando em que desabafar. Como achasse tudo em
ordem, queixara-se da vida. E agora vingava-se em Baleia, dando-lhe um pontapé.
Avizinhou-se da janela baixa da cozinha, viu os meninos, entretidos no
barreiro, sujos de lama, fabricando bois de barro, que secavam ao sol, sob o pé de turco, e
não encontrou motivo para repreendê-los. Pensou de novo na cama de varas e
mentalmente xingou Fabiano. Dormiam naquilo, tinham-se acostumado, mas seria mais
agradável dormirem numa cama de lastro de couro, como outras pessoas.
Fazia mais de um ano que falava nisso ao marido. Fabiano a princípio
concordara com ela, mastigara cálculos, tudo errado. Tanto para o couro, tanto para a
armação. Bem. Poderiam adquirir o móvel necessário economizando na roupa e no
querosene. Sinha Vitória respondera que issoera impossível, porque eles vestiam mal, as
crianças andavam nuas, e recolhiam-se todos ao anoitecer. Para bem dizer, não se
acendiam candeeiros na casa. Tinham discutido, procurando cortar outras despesas. Como
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Vidas Secas - Graciliano Ramos
RomanceO que impulsiona os personagens é a seca, áspera e cruel, e paradoxalmente a ligação telúrica, afetiva, que expõe naqueles seres em retirada, à procura de meios de sobrevivência e um futuro. Apesar desse sentimento de transbordante solidariedade e c...