O Menino Mais Novo

4K 51 2
                                    

A IDÉIA surgiu-lhe na tarde em que Fabiano botou os arreios na égua alazã e

entrou a amansá-la. Não era propriamente idéia: era o desejo vago de realizar qualquer

ação notável que espantasse o irmão e a cachorra Baleia.

Naquele momento Fabiano lhe causava grande admiração. Metido nos couros,

de perneiras, gibão e guarda-peito, era a criatura mais importante do mundo. As rosetas

das esporas dele tilintavam no pátio; as abas do chapéu, jogado para trás, preso debaixo

do queixo pela correia, aumentavam-lhe o rosto queimado, faziam-lhe um círculo enorme

em torno da cabeça.

O animal estava selado, os estribos amarrados na garupa, e Sinha Vitória

subjugava-o agarrando-lhe os beiços. O vaqueiro apertou a cilha e posse a andar em redor,

fiscalizando os arranjos, lento. Sem se apressar, livrou-se de um coice: virou o corpo, os

cascos da égua passaram-lhe rente ao peito, raspando o gibão. Em seguida Fabiano subiu

ao copiar, saltou na sela, a mulher recuou - e foi um redemoinho na catinga.

Trepado na porteira do curral, o menino mais novo torcia as mãos suadas,

estirava-se para ver a nuvem de poeira que toldava as imburanas. Ficou assim uma

eternidade, cheio de alegria e medo, até que a égua voltou e começou a pular furiosamente

no pátio, como se tivesse o diabo no corpo. De repente a cilha rebentou e houve um

desmoronamento. O pequeno deu um grito, ia tombar da porteira. Mas sossegou logo.

Fabiano tinha caído em pé e recolhia-se banzeiro e cambaio, os arreios no braço. Os

estribos, soltos na carreira desesperada, batiam um no outro, as rosetas das esporas

tiniam.

Sinha Vitória cachimbava tranqüila no banco do copiar, catando lêndeas no

filho mais velho. Não se conformando com semelhante indiferença depois da façanha do

pai, o menino foi acordar Baleia, que preguiçava, a barriguinha vermelha descoberta, semvergonha.

A cachorra abriu um olho, encostou a cabeça à pedra de amolar, bocejou e pegou

no sono de novo.

Julgou-a estúpida e egoísta, deixou-a, indignado, foi puxar a manga do vestido

da mãe, desejando comunicar-se com ela. Sinha Vitória soltou uma exclamação de

aborrecimento, e, como o pirralho insistisse, deu-lhe um cascudo.

Retirou-se zangado, encostou-se num esteio do alpendre, achando o mundo

todo ruim e insensato. Dirigiu-se ao chiqueiro, onde os bichos bodejavam, fungando,

erguendo os focinhos franzidos. Aquilo era tão engraçado que o egoísmo de Baleia e o mau

humor de Sinha Vitória desapareceram. A admiração a Fabiano é que ia ficando maior.

Esqueceu desentendimentos e grosserias, um entusiasmo verdadeiro encheulhe

a alma pequenina. Apesar de ter medo do pai, chegou-se a ele devagar, esfregou-se

nas perneiras, tocou as abas do gibão. As perneiras, o gibão, o guarda- peito, as esporas e

Vidas Secas - Graciliano RamosWhere stories live. Discover now