O MULUNGU do bebedouro cobria-se de arribações. Mau sinal, provavelmente
o sertão ia pegar fogo. Vinham em bandos, arranchavam-se nas árvores da beira do rio,
descansavam, bebiam e, como em redor não havia comida, seguiam viagem para o sul. O
casal agoniado sonhava desgraças. O sol chupava os poços, e aquelas excomungadas
levavam o resto da água, queriam matar o gado.
Sinha Vitória falou assim, mas Fabiano resmungou, franziu a testa, achando a
frase extravagante. Aves matarem bois e cabras, que lembrança! Olhou a mulher,
desconfiado, julgou que ela estivesse tresvariando. Foi sentar-se no banco do copiar,
examinou o céu limpo, cheio de claridades de mau agouro, que a sombra das arribações
cortava. Um bicho de penas matar o gado! Provavelmente Sinha Vitória não estava
regulando.
Fabiano estirou o beiço e enrugou mais a testa suada: impossível
compreender a intenção da mulher. Não atinava. Um bicho tão pequeno! Achou a coisa
obscura e desistiu de aprofundá-la. Entrou em casa, trouxe o aió, preparou um cigarro,
bateu com o fuzil na pedra, chupou uma tragada longa. Espiou os quatro cantos, ficou
alguns minutos voltado para o norte, coçando o queixo.
- Chi! Que fim de mundo! Não permaneceria ali muito tempo. No silêncio
comprido só se ouvia um rumor de asas. Como era que Sinha Vitória tinha dito? A frase
dela tornou ao espírito de Fabiano e logo a significação apareceu. As arribações bebiam a
água. Bem. O gado curtia sede e morria. Muito bem. As arribações matavam o gado.
Estava certo. Matutando, a gente via que era assim, mas Sinha Vitória largava tiradas
embaraçosas. Agora Fabiano percebia o que ela queria dizer. Esqueceu a infelicidade
próxima, riu-se encantado com a esperteza de Sinha Vitória. Uma pessoa como aquela
valia ouro. Tinha idéias, sim senhor, tinha muita coisa no miolo. Nas situações difíceis
encontrava saída. Então! Descobrir que as arribações matavam o gado! E matavam. Aquela
hora o mulungu do bebedouro, sem folhas e sem flores, uma barrancharia pelada,
enfeitava-se de penas.
Desejou ver aquilo de perto, levantou-se, botou o aió a tiracolo, foi buscar o
chapéu de couro e a espingarda de pederneira. Desceu o copiar, atravessou o pátio,
avizinhou-se da ladeira pensando na cachorra Baleia. Coitadinha. Tinham- lhe aparecido
aquelas coisas horríveis na boca, o pêlo caíra, e ele precisara matá-la. Teria procedido
bem? Nunca havia refletido nisso. A cachorra estava doente. Podia consentir que ela
mordesse os meninos? Podia consentir? Loucura expor as crianças à hidrofobia. Pobre da
Baleia. Sacudiu a cabeça para afastá-la do espírito. Era o diabo daquela espingarda que lhe
trazia a imagem da cadelinha. A espingarda, sem dúvida. Virou o rosto defronte das pedras
YOU ARE READING
Vidas Secas - Graciliano Ramos
RomanceO que impulsiona os personagens é a seca, áspera e cruel, e paradoxalmente a ligação telúrica, afetiva, que expõe naqueles seres em retirada, à procura de meios de sobrevivência e um futuro. Apesar desse sentimento de transbordante solidariedade e c...