A VIDA na fazenda se tornara difícil. Sinha Vitória benzia- se tremendo,
manejava o rosário, mexia os beiços rezando rezas desesperadas. Encolhido no banco do
copiar, Fabiano espiava acatinga amarela, onde as folhas secas se pulverizavam, trituradas
pelos redemoinhos, e os garranchos se torciam, negros, torrados. No céu azul as últimas
arribações tinham desaparecido. Pouco a pouco os bichos se finavam, devorados pelo
carrapato. E Fabiano resistia, pedindo a Deus um milagre.
Mas quando a fazenda se despovoou, viu que tudo estava perdido, combinou a
viagem com a mulher, matou o bezerro morrinhento que possuíam, salgou a carne, largouse
com a família, sem se despedir do amo. Não poderia nunca liquidar aquela dívida
exagerada. Só lhe restava jogar-se ao mundo, como negro fugido.
Saíram de madrugada. Sinha Vitória meteu o braço pelo buraco da parede e
fechou a porta da frente com a taramela. Atravessaram o pátio, deixaram na escuridão o
chiqueiro e o curral, vazios, de porteiras abertas, o carro de bois que apodrecia, os
juazeiros. Ao passar junto às pedras onde os meninos atiravam cobras mortas, Sinha
Vitória lembrou-se da cachorra Baleia, chorou, mas estava invisível e ninguém percebeu o
choro.
Desceram a ladeira, atravessaram o rio seco, tomaram rumo para o sul.
Com a fresca da madrugada, andaram bastante, em silêncio, quatro sombras no caminho
estreito coberto de seixos miúdos - os meninos à frente, conduzindo trouxas de roupa,
Sinha Vitória sob o baú de folha pintada e a cabaça de água, Fabiano atrás, de facão de
rasto e faca de ponta, a cuia pendurada por uma correia amarrada ao cinturão, o aió a
tiracolo, a espingarda de pederneira num ombro, o saco da matalotagem no outro.
Caminharam bem três léguas antes que a barra do nascente aparecesse Fizeram alto. E
Fabiano depôs no chão parte da carga, olhou o céu, as mãos em pala na testa. Arrastarase
até ali na incerteza de que aquilo fosse realmente mudança. Retardara-se e repreendera
os meninos, que se adiantavam, aconselhara-os -a poupar forças. A verdade é que não
queria afastar-se da fazenda. A viagem parecia-lhe semjeito, nem acreditava nela.
Preparara-a lentamente, adiara-a, tornara a prepará-la, e só se resolvera a partir quando
estava definitivamente perdido. Podia continuar a viver num cemitério? Nada o prendia
àquela terra dura, acharia um lugar menos seco para enterrar-se. Era o que Fabiano dizia,
pensando em coisas alheias:" o chiqueiro e o curral, que precisavam conserto, o cavalo de
fábrica, bom companheiro, a égua alazã, as catingueiras, as panelas de losna, as pedras
da cozinha, a cama de varas. E os pés dele esmoreciam, as alpercatas calavam-se na
escuridão. Seria necessário largar tudo? As alpercatas chiavam de novo no caminho
coberto de seixos.
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Vidas Secas - Graciliano Ramos
RomanceO que impulsiona os personagens é a seca, áspera e cruel, e paradoxalmente a ligação telúrica, afetiva, que expõe naqueles seres em retirada, à procura de meios de sobrevivência e um futuro. Apesar desse sentimento de transbordante solidariedade e c...