Parte 1: Branco 1 - Beba até a última gota deste momento

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O vermelho simboliza extremos: veste o Papa assim como pinta o Diabo. Primeira cor visível no espectro luminoso, sinaliza a paixão — que nada mais é que os extremos da alegria e da dor.

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PARTE 1: BRANCO — BEM-VINDO À SUPERFÍCIE

 Primavera, novembro de 2012


A NOITE ERA UMA CASA VAZIA. Suas luzes eram ermos reflexos e seus sons, tardios ecos engolidos pelo trovão. Os que entraram e saíram durante o dia não haviam deixado marcas. Agora aferrava-se ali uma bruma azulada trazendo um cheiro verde de musgo, arauto da tempestade com seu clarim que não se via.

Das árvores eriçadas caíam folhas rodopiando na dança da chuva que espelhava a inquietude de Marisa. Cautelosa, ela avançou na rua deserta com um súbito nó de apreensão. A adrenalina apertava-lhe o peito como as garras de um predador. Ela estremeceu quando o casaco se entreabriu e tremulou prestes a levantar voo. Seus sapatinhos de boneca imprimiam uma voz solitária no asfalto. Toc, toc, toc... 

Eles pareciam dizer: volte, volte, volte... Marisa adiantou o passo.

Uma ratazana cinzenta de olhos sanguíneos saltou do meio-fio, provocando-lhe um sobressalto. Marisa olhou para os lados, enquanto se recriminava por não ter tomado logo um táxi. Dobrando rápido a esquina, enveredou por uma avenida larga do centro de São Paulo. Seus passos deixaram para trás prédios cerrados e vitrines de lojas adormecidas num leito de breu. Marisa só parou quando alcançou um edifício antigo com fachada de pastilhas azuis típica dos anos cinquenta.

Ela tocou a campainha ao mesmo tempo em que martelava o punho na porta de vidro. O porteiro, reconhecendo-a, pressionou uma tecla atrás do balcão lustroso de cedro. A porta se abriu, e Marisa transpôs a soleira depressa. Foi logo atravessando o saguão de mármore verde enquanto acenava para o vigia — em seu rosto, aflorou um sorriso que ele não viu.

Marisa esperou o elevador, o pé sapateando discretamente. Subiu ao décimo quinto andar, onde aportou com um ligeiro ofegar. No vestíbulo sem adornos, a porta não ofereceu resistência quando Marisa a empurrou, esgueirando-se na sala de estar às escuras. Um tímido retângulo de luz a guiou até o corredor. Marisa deteve-se diante do escritório, tomou fôlego, entrou.

À sua passagem, as paredes forradas de livros retraíam-se na penumbra, deixando para trás o cheiro de papel e lustra-móveis de lavanda. O tique-taque de um relógio de pêndulo — metódico, impaciente — pontuava o silêncio. Marisa parou no centro do cômodo, a figura de Marco impressa em sua retina. Toda a ansiedade, toda a culpa, todo o medo foram esquecidos.

A cúpula de vidro da luminária sobre a escrivaninha luzia como farol de jade no mar de sombras. Atrás do reflexo verde, acomodado numa cadeira de espaldar alto, ele esperava. Seus olhos, de um castanho denso que beirava o negro, estavam postos nela antes mesmo que Marisa entrasse ali, imaginando-a ao som de cada passo. Em sua imobilidade, o corpo de Marco guardava dentro de si uma torrente. Era sugerida pelo brilho das íris e pelo modo como uma das mãos se crispava levemente na borda da escrivaninha. Ele tinha tez mais morena do que clara, fronte meditativa e boca de traçado firme. Os cabelos pretos e escorridos repartiam-se de lado, num vestígio de formalidade que combinava com sua calça cinza, cinto estreito e camisa branca com a gravata de seda afrouxada no colarinho.

Ele começou a enrolar as mangas da camisa. Seus gestos eram deliberados.

— Você está atrasada — disse por fim, severo.

— Desculpe, Mestre. Prometo ser mais pontual daqui em diante.

— Dessa vez passa. Mas no futuro não vou mais tolerar atrasos. Entendido?

VERMELHO: Uma História de AmorOnde as histórias ganham vida. Descobre agora