Parte 3: Vermelho 15 - Vertigem

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Pela fresta da cortina se imiscuíam filamentos de luz e neblina. O dia entrava de mansinho no quarto, de mansinho no sono. Sono sem sonhos mas povoado de impressões novas Pela fresta da cortina se imiscuíam filamentos de luz e neblina. O dia entrava de mansinho no quarto, de mansinho no sono. Sono sem sonhos mas povoado de impressões novas e antigas. A mente uma caravela à deriva, o corpo um feixe dolorido de músculos. A mente dolorida, o corpo à deriva. Durou uma hora. Os dois despertaram na mesma posição em que haviam adormecido. Marisa a princípio perdida, sem saber onde estava. Aí lembrou.

 - Tira esse robe - Marco pediu baixinho, alisando-lhe os cabelos. - Quero sentir você.

Ela fitou as listras verdes do papel de parede - simétricas, silenciosas, assépticas. Plácidas na retidão de seu caminho. Quis que o seu coração também fosse assim.

- Por quê, Marco?

- Para ficar mais perto. Isso incomoda você?

Em resposta, ela despiu desajeitadamente o roupão e aconchegou-se no calor dele. Mantinha-se de costas para Marco, os olhos alerta, o pulso errático. Ele tirou a camiseta branca e envolveu Marisa nos braços. E assim quedaram na penumbra, enquanto sua respiração ia fluindo outra vez no mesmo ritmo. Então ela virou-se e fitou Marco. Acompanhou o contorno de seu rosto com os dedos, sentindo a pele mais áspera no queixo com a barba por fazer. Demorou-se nos lábios. Fazia tanto, tanto tempo... Ele tornou a afagar seus cabelos e ela o imitou, afastando a mecha escura que insistia em escorrer pela fronte dele. Estar nos braços dele era o que mais queria e agora lhe sondava o rosto, com medo de confiar, com medo de descobrir ali a covardia. Não foi, porém, o que encontrou. A intensidade do sentimento era genuína.

- Me diz uma coisa, Marco... Por que é que quando a gente quer muito uma coisa, mas muito mesmo, ela não se concretiza? E basta a gente parar de pensar nela para que aconteça?

- Deve ser porque, se você quer uma coisa demais, não está preparada para tê-la.

- Como assim? - Marisa perguntou após meditar um instante.

- Essa... coisa que a gente quer muito serve para preencher uma lacuna. Quando paramos de pensar nela, estamos prontos para tê-la porque estamos inteiros.

Ele entrelaçou os dedos nos seus, e havia infinita ternura naquele gesto. Num impulso, Marisa imprimiu seus lábios nos dele. Quando ia recuar, Marco a reteve, estreitando-a nos braços e olhando dentro dos seus olhos. Seu olhar cambiava de segundo a segundo. Ela pressentiu em Marco a mesma ambiguidade que agora a paralisava. Medo e saudade. Mas do que ele teria medo?

No rosto de Marco, reconheceu a expressão que havia detectado no último encontro dos dois. Dessa vez, porém, ele não foi embora. Em vez disso buscou sua boca. O beijo se entremeou da familiaridade do passado e da estranheza do presente, estendendo-se em carícias vacilantes que gradualmente ganharam firmeza e propósito. Os dois percorreram o corpo um do outro sem pressa, naqueles caminhos já conhecidos e em outros ainda inexplorados, persistindo nos focos onde aflorava o prazer.

Quando afinal fizeram uma pausa e se entreolharam, estavam corados e ofegantes. O desejo dela espelhava o dele.

- Você trouxe o dado?

- Trouxe.

- Não vai jogar?

- Agora não.

Ela sorriu intrigada.

- É a nossa primeira vez sem roteiro.

- De certa forma é minha primeira vez também - ele disse.

Marco sorriu, e depois já não sorria. Beijou-a com fome, e com fome a possuiu nas mãos, nos lábios, na língua, nos dentes. Marisa empurrou-o de encontro ao colchão, seus cabelos um jorro escuro ao redor dele, e arrancou-lhe o resto das roupas. Debruçando-se, estimulou-o com o próprio corpo, os seios que resvalavam no peito, o ventre sobre o ventre, a língua na pele e depois um sopro...

Queriam prolongar aquele momento, mas à sua revelia, a urgência brotava nos gestos. As mãos de Marco subiram por seus seios para lhe rodear o pescoço. Ele se soergueu para devorar sua boca, ela enterrou as unhas nos braços dele. E o lado animal emergiu sem amarras. Carne desvelada. Cheiro da pele. A lisura nos fios de cabelo. Gosto de beijo. Sussurro.

À medida que se fundiam um no outro, suas barreiras se dissolviam uma a uma, sem mais razão, sem mais questionamento. Uniram-se na mesma cadência e perderam-se no mesmo vórtice, espiralando cada vez mais rápido, mais rápido, os olhos nos olhos, os olhos turvados, a escuridão da entrega como um véu infinito no arco do espaço, e o resplendor da vertigem, a vertigem, a vertigem...

Agora feche os olhos e esqueça o pensamento. Sinta. Sinta. Dentro.

Para aprender de cor o ritmo do coração.


VERMELHO: Uma História de AmorOnde as histórias ganham vida. Descobre agora