Parte 2: Negro 5 - O número 1

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Felizmente junho estava chegando ao fim. Precisava de férias. Precisava sumir. Ficava irrequieto de um lado a outro como um animal numa jaula. O humor andava péssimo, e nem os longos treinos na academia ajudavam. Quando não estava levantando o peso do mundo junto com os aparelhos, enfurnava-se nas lojas do Centro até perder a noção do tempo, procurando e procurando - o quê, ele não sabia. Aquela energia nervosa não achava escape. A muito custo, Marco dissimulava seu estado de espírito. No colégio, Belvedere tentava se aproximar-dando-lhe tapinhas nas costas e puxando conversa para estabelecer uma cumplicidade masculina na qual ele não tinha o menor interesse. Tinha era vontade de dar um murro na cara do diretor: Celeste, a bibliotecária preterida, agora chorava pelos cantos. Era de cortar o coração.

Naquele dia, Marco estava com a bibliotecária na cantina e fez um inocente comentário sobre o tempo. Parecia que ia chover. Só isso. Celeste fez que sim com a cabeça e, de repente, desaguou um dilúvio de lágrimas dentro da xícara de café. Inventou que era um cisco no olho e ele, fingindo que acreditava, ofereceu-lhe um guardanapo para secar o rosto.

Marco detestava ter que se fazer de desentendido. Além do mais, lágrimas de mulher sempre o deixavam nervoso, com seu caudal de emoções indecifráveis. Sem contar as acusações. Não era à toa que os gregos antigos tinham criado um arquétipo feminino associado à instabilidade das águas: a Afrodite concebida na espuma do mar, deusa do Amor e mãe do Medo, bela e sedutora, imprevisível e voluntariosa - e, no mínimo, chorona também.

Ao ver a bibliotecária soluçando, ele pensou em Marisa. Naquela tarde de chuva, o carro impregnado com o perfume de vetiver, o rosto dela marcado pelo choro, os livros se esparramando pelo chão... antes das coisas mudarem. Na cadência das recordações, a memória também aflorou em algum lugar dentro do peito dele.

Fazia muito tempo que não se sentia assim. Com um vazio que não conseguia preencher. Precisava vê-la. Quando chegou em casa, apanhou o celular e telefonou. O toque de chamada se prolongou enquanto ele mal continha a impaciência. Ouviu-se então a mensagem gravada da caixa postal.

Marco desligou, pensativo. Visitou a estante do escritório e fez menção de apanhar um dos livros que estava lendo (um estudo de Giles Deleuze sobre a obra de Sacher-Masoch), mas mudou de ideia e pegou um exemplar aleatoriamente, abrindo-o numa página qualquer: Somos dois abismos - um poço fitando o céu. Ele riu sem vontade. O livro do desassossego de Fernando Pessoa. Era só o que faltava: o Universo enviando mensagens irônicas.

Retirou outro título da estante sem olhar. Nietzsche. Bom, filosofia sempre ocupava a mente e relaxava: Se olhares detidamente dentro do abismo, o abismo olhará dentro de ti... Agora isso já estava ficando ridículo, pensou Marco. E largou o livro, que aterrissou na cadeira com um murmurejo resignado.

Tornou a pegar o celular e tentou de novo. Dessa vez, logo no segundo toque, ela atendeu um pouco ofegante.

- Você pode vir aqui hoje? - ele perguntou sem rodeios.

Houve uma pausa quase imperceptível do outro lado da linha.

- Quando?

- À noite. No horário de sempre.

- Não posso. É aniversário da minha mãe e não tenho como escapar... Amanhã?

- Amanhã então.

Nova pausa. Quando ela falou, sua voz falseou ligeiramente.

- Você planejou alguma coisa? - sondou.

- Ainda não. Que tal uma surpresa?

- Adoro surpresas, Marco.

- Pronto, vou fazer uma surpresa especial para você.

- Mal posso esperar.

Àquelas palavras, Marco sorriu e olhou distraidamente a paisagem urbana recortada na janela. Sua tensão começou a ceder.

Ela, por sua vez, deixou escapar uma risada forçada. Queria mostrar que tinha tudo sob controle. Pressentindo o sorriso de Marco, imaginou o que ele tencionava fazer e abafou a vontade de estar com ele naquele minuto mesmo.

- Então nos vemos amanhã à noite - disse num tom displicente. - Tenho que cuidar de umas coisas, mas acho que consigo chegar no horário...

Mal ele desligou o telefone, voltou a ficar agitado. Ela não o preenchia mais. No começo era diferente. Mas teria sido mesmo? Talvez ele não enxergasse. Talvez não quisesse enxergar. Fechou os olhos. Não, não queria enxergar. Tinha esperança. Ignorou o fato de que ela estava se apagando. Nem mesmo seu nome lhe visitava o pensamento. Era simplesmente "ela".

Marco sentiu culpa. Isso não era justo com uma parceira. Decidiu concentrar-se nos planos para a noite seguinte. Afinal, tinha prometido uma surpresa, certo? Foi então à cozinha, arrebatou o dado no balcão e sentou-se à mesa, fixando os olhos no cubo de marfim em busca de inspiração. Era de fato uma peça clássica, pensou. Devia custar muito mais do que a soma irrisória que ele havia desembolsado. Não era supersticioso, mas podia jurar que aquele dado às vezes lhe pregava peças. Tinha sido assim desde o início.

Estava com seu amigo Jeff passando um fim de semana em Las Vegas. Seria sua primeira e última visita à cidade: não ficou impressionado com o que viu - uma reluzente armadilha embalada dia e noite pelo uivo dos caça-níqueis. Em sua primeira noite ali, jantaram, foram ao cassino e, quando deram as onze horas, decidiram voltar para o hotel e se perderam. Entraram por uma galeria estreita com bares e lanchonetes de fast-food, achando que cortariam caminho; a galeria, porém, não tinha saída. O que encontraram ao final dela foi um antiquário. Na vitrine, entre uma velha máquina fotográfica e um bule provençal, Marco viu o dado.

O estabelecimento estava aberto, e os dois entraram em uma sala mal iluminada revestida por estantes de nogueira escurecida pelo tempo. Cheirava a a papel velho com um leve traço de cânfora. Não havia ninguém ali para atendê-los. Investigaram então as prateleiras transbordando de objetos representativos de várias décadas, desde atlas antigos até estatuetas de anjos barrocos. Marco bateu palmas e chamou o atendente sem obter resposta. Decorridos alguns minutos, não resistiu e apanhou o dado na vitrine.

- Essa peça está em promoção - informou uma voz às suas costas.

Ele se virou com um sobressalto e deparou com uma mulher de pele muito branca, com olhos e cabelos muito negros. Vestia um longo escuro de mangas compridas que não combinava com o calor de julho. Aproximou-se mancando de leve.

- É uma réplica artesanal de um dado romano de dois mil anos usado como oráculo. Marfim de elefante. Uma bela peça ornamental. Note que cada ponto é uma espiral, símbolo dos mistérios da vida que se fazem em círculos: os planetas e suas órbitas, os ciclos de criação, destruição e recriação, e o próprio tempo que se torce entre o presente, o passado e o futuro.

- Interessante. Então ele é usado em jogos divinatórios - disse Marco.

- Em princípio, sim. Mas o segundo dado do conjunto está faltando e o oráculo sai incompleto. Isso às vezes gera resultados estranhos.

Marco pensou em Lorena e tentou ignorar a pontada no peito. Deu um sorriso que zombava de si mesmo. Um dado incompleto para um homem incompleto. Servia.

Chegaram meia hora mais tarde ao hotel, Jeff de mãos vazias e ele com uma pequena caixa embrulhada em papel verde. Estavam cansados, mas fizeram uma parada no bar do lobby assim mesmo. Em meio aos vermelhos dos bancos e das cortinas, com os braços apoiados no balcão de madeira escura, fizeram um brinde. Não demorou muito e ela apareceu - espiralando a noite, espiralando o tempo.

Marco sentiu o círculo da vertigem e afastou-a do pensamento. Convinha fazer os preparativos. Concentrou-se, agitou o dado nas mãos e fez o lançamento. O dado pareceu flutuar em câmera lenta, descrevendo um salto mortal que o arremessou até a borda da mesa. Mais alguns milímetros, e teria rolado para o chão. Quando Marco viu o resultado, fez menção de recolher o dado para jogar de novo. Parou com a mão pendente no ar.

A regra era aceitar os ditames do primeiro número que saísse, não importava qual. Essa era a beleza da coisa.

Marco ficou olhando o círculo escuro que sobressaía solitariamente na superfície do quadrado branco.

Jogou de novo.

VERMELHO: Uma História de AmorOnde as histórias ganham vida. Descobre agora