Meia Hora Embaixo da Cama

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  Não tardou que Filipe, como bom amigo e hóspede, viesse em auxílio de Augusto.Em verdade que era impossível passar o resto da tarde e a noite inteira com aquela calça,manchada pelo café; e, portanto, os dois estudantes voaram à casa. Augusto, entrando no 51gabinete destinado aos homens, ia tratar de despir-se, quando foi por Filipe interrompido. - Augusto, uma idéia feliz! vai vestir-te no gabinete das moças. - Mas que espécie de felicidade achas tu nisso? - Ora! pois tu deixas passar uma tão bela ocasião de te mirares no mesmo espelhoem que elas se miram!... de te aproveitares das mil comodidades e das mil superfluidadesque formigam no toucador de uma moça?... Vai!... sou eu que to digo; ali acharás banhas epomadas naturais de todos os países; óleos aromáticos, essências de formosura e de todas asqualidades; águas cheirosas, pós vermelhos para as faces e para os lábios, baeta fina paraesfregar o rosto e enrubescer as pálidas, escovas e escovinhas, flores murchas e outrasviçosas. - Basta, basta; eu vou, mas lembra-te que és tu quem me fazes ir e que o meucoração adivinha... - Anda, que o teu coração sempre foi um pedaço d'asno. E, isto dizendo, Filipe empurrou Augusto para o gabinete das moças e se foi reunirao rancho delas. Ai do pobre Augusto!... mal tinha acabado de tirar as calças e a camisa, que tambémse achava manchada, sentiu rumor que faziam algumas pessoas que entravam na sala. Augusto conheceu logo que eram moças, porque estes anjinhos, quando se juntamfazem, conversando, matinada tal, que a um quarto de légua se deixam adivinhar; se ésediço e mesmo insólito compará-las a um bando de lindas maitacas, não há remédio senãodizer que muito se assemelham a uma orquestra de peritos instrumentais, na hora daafinação. Ora, o nosso estudante estava, por sua esdrúxula figura, incapaz de aparecer apessoa alguma; em ceroulas e nu da cintura para cima, faria recuar de espanto, horror,vergonha e não sei que mais, ao belo povinho que acabava de entrar em casa e que,certamente, se assim o encontrasse, teria de cobrir o rosto com as mãos; e, portanto, o pobrerapaz seguiu o primeiro pensamento que lhe veio à mente: ajuntou toda a sua roupa,enrolou-a, e com ela embaixo do braço escondeu-se atrás de uma linda cama que se achavano fundo do gabinete, cuidando que cedo se veria livre de tão intempestiva visita; mas,ainda outra vez, pobre estudante! teve logo de agachar-se e espremer-se para baixo dacama, pois quatro moças entraram no quarto. E eram elas D. Joaninha, D. Quinquina, D.Clementina e uma outra por nome Gabriela, muito adocicada, muito espartilhada, muitoestufada, e que seria tudo quanto tivesse vontade de ser, menos o que mais acreditava queera, isto é, bonita.Depois que todas quatro se miraram, compuseram cabelos, enfeites e mil outrosobjetos que estavam todos muito em ordem, mas que as mãozinhas destas quatrodemoiselles não puderam resistir ao prazer, muito habitual nas moças, de desarranjar paraoutra vez arranjar, foram por mal dos pecados de Augusto, sentar-se da maneira seguinte:D. Clementina e D. Joaninha na cama, embaixo da qual estava ele; D. Quinquina de umlado, em uma cadeira, e D. Gabriela exatamente defronte do espelho, do qual não tirava osolhos, em outra cadeira que, apesar de ser de braços e larga, pequena era para lhe caber semincômodo toda a coleção de saias, saiotes, vestidos de baixo e enorme variedade deenchimentos que lhe faziam de suplemento à natureza, que com D. Gabriela, segundo suaspróprias camaradas, tinha sido um pouco mesquinha a certos respeitos. Depois de respirar um momento, as meninas, julgando-se sós, começaram aconversar livremente, enquanto Augusto, com sua roupa embaixo do braço, coberto de teiasde aranha e suores frios, comprimia a respiração e conservava-se mudo e quedo, medroso 52de que o mais pequeno ruído o pudesse descobrir; para meu mor infortúnio, a barra da camaera incompleta e havia seguramente dois palmos e meio de altura descobertos, por onde, sealguma das moças olhasse, seria ele impreterivelmente visto. A posição do estudante erapenosa, certamente; por último, saltou-lhe uma pulga à ponta do nariz, e por mais que oinfeliz a soprasse, a teimosa continuou a chuchá-lo com a mais descarada impunidade. - Antes mil vezes cinco batinas seguidas, em tempo de barracas no Campo!... diziaele consigo. Mas as moças falam já há cinco minutos; façamos por colher algumas belezas, o queé, na verdade, um pouco difícil, pois, segundo o antigo costume, falam todas quatro aomesmo tempo. Todavia, alguma coisa se aproveitará. - Que calor!... exclamou D. Gabriela, afetando no abanar de seu leque todo odonaire de uma espanhola; oh! não parece que estamos no mês de julho; mas, por minhavida, vale bem o incômodo que sofremos, o regalo que têm tido nossos olhos. - Bravo, D. Gabriela!... então seus olhos... - Têm visto muita coisa boa. Olhe, não é por falar, mas, por exemplo, há objeto maisinteressante do que D. Luísa mostrar-se gorda, esbelta, bem feita?... - É um saco! - E como é feia!... - É horrenda! - É um bicho! - E não vimos a filha do capitão com sua dentadura postiça?... Agora não faz senãorir!... - Coitadinha! aperta tanto os olhos! - Se ela pudesse arranjar também um postiço para o queixo! - Ora, D. Clementina, não me obrigue a rir!... - D. Joaninha, você reparou no vestido de chalim de D. Carlota?... Quanto a mim,está absolutamente fora da moda. - Ainda que estivesse na moda, não há nada que nela assente bem. - Ora... é um pau vestido!... tem uma testa maior que a rampa do Largo do Paço!... - Um nariz com tal cavalete, que parece o morro do Corcovado!... - E a boca?... ah! ah! ah! - Parece que anda sempre pedindo boquinhas. - E que língua que ela tem! - É uma víbora! - Eu não sei por que as outras não hão de ser como nós, que não dizemos mal denenhuma delas. - É verdade, porque se eu quisesse falar... - Diga sempre, D. Quinquina. - Não... não quero. Mas, passando a outra coisa... D. Josefina aplaude com prazer amoda dos vestidos compridos! - Por quê? - Ora... porque tem pernas de caniço de sacristão. - Pernas finas também é moda presentemente.- Deus me livre!... acudiu D. Clementina; pelo menos para mim nunca deve ser, poisnão posso emendar a natureza, que me deu pernas grossas. - Não lhe fico atrás, juro-lhe eu! exclamou D. Quinquina. - Nem eu! Nem eu! disseram as outras duas. 53 - Isso é bom de se dizer, tornou a primeira; mas, felizmente, podemos tirar asdúvidas. - Como? - Facilmente: vamos medir nossas pernas. Ouvindo tal proposição, o nosso estudante, apesar de se ver em apuros embaixo dacama, arregalou os olhos de maneira que lhe pareciam querer saltar das órbitas, porém, D.Gabriela, que não parecia estar muito consigo e que só por honra da firma dissera o seu"nem eu!", veio deixá-lo com água na boca. - Havia de ser engraçado, disse ela, arregaçarmos aqui nossos vestidos!... - Que tinha isso?... acudiu D. Quinquina; não somos todas moças?... dir-se-ia quenão temos dormido juntas.- É verdade, acrescentou D. Clementina e, além de que, não se veria demais senãoquatro ou cinco saias por baixo do segundo vestido. - E talvez algum saiote... vamos a isto! - Não... não... disse, por sua vez, D. Joaninha.- Pois por mim não era a dúvida, tornou D. Clementina, com ar de triunfo,recostando-se mole e voluptuosamente nas almofadas, e deixando escorregar de propósitouma das pernas para fora do leito, até tocar com o pé no chão, de modo que ficou à mostraaté o joelho. - Quem me dera já casar... suspirou ela. Pobre Augusto!... não te chamarei eu feliz!... ele vê a um palmo dos seus olhos aperna mais bem torneada que é possível imaginar!... através da finíssima meia aprecia umamistura de cor de leite com a cor-de-rosa e, rematando este interessante painel róseo, umpezinho que só se poderia medir a polegadas, apertado em um sapatinho de cetim, e queestava mesmo pedindo um... dez... cem... mil beijos; mas, quem o pensaria? não forambeijos o que desejou o estudante outorgar àquele precioso objeto; veio-lhe ao pensamento oprazer que sentiria dando-lhe uma dentada... Quase que já se não podia suster... já estava deboca aberta e para saltar... Porém, lembrando-se da exótica figura em que se via, meteu aroupa que tinha enrolada entre os dentes e, apertando-os com força, procurava iludir suaimaginação. - Quem me dera já casar!... repetiu D. Clementina. - Isto é fácil, disse D. Gabriela; principalmente se devemos dar crédito aos que tantonos perseguem com finezas. Olhem, eu vejo-me doida!... mais de vinte me atormentam!Querem saber o que me sucedeu ultimamente?... Eu confesso que me correspondo comcinco... isto é só para ver qual dos cinco quer casar primeiro; pois bem, ontem, uma pretaque vende empadas e que se encarrega das minhas cartas, recebeu da minha mão duas... - Logo duas?... - Ora pois, apesar de todas as minhas explicações, a maldita estava de mona. Mesmodizendo-lhe eu dez vezes: a de lacre azul é do Sr. Joãozinho e a de verde é do Sr. Juca,sabem o que fez?... Trocou as cartas! - E o resultado?...- Ei-lo aqui, respondeu D. Gabriela, tirando um papel do seio; ao vir embarcar, equando descia a escada, a tal preta, com a destreza precisa, entregou-me este escrito do Sr.Joãozinho: "Ingrata! Ainda tremem minhas mãos, pegando no corpo de delito da tuaperfídia! Escreves a outro? Compareces por tão horrível crime perante o júri do meucoração; e, bem que tenhas nesse tribunal a tua beleza por advogada, o meu ciúme e justoressentimento, que são os juízes, te condenam às perpétuas galés do desprezo; e só te 54poderás livrar delas se apelares dessa sentença para o poder moderador de minha cegapaixão." - Bravo, D. Gabriela! o Sr. Joãozinho é sem dúvida estudante de jurisprudência? - Não, é doutor. - Bem mostra pelo bem que escreve. - Mas eu sou bem tola! conto tudo o que me sucede e ninguém me confia nada! - Isso é razoável, disse D. Clementina; nós devemos pagar com gratidão a confiançade D. Gabriela. Eu começo declarando que estou comprometida com o Sr. Filipe a deixaresta noite, embaixo da quarta roseira da rua do jardim, que vai direita ao caramanchão, umembrulhozinho com uma trança de meus cabelos. - Que asneira?... por que lhe não entrega ou não lho manda entregar?... - Ora... eu tenho muita vergonha... antes quero assim; até parece romântico. - São caprichos de namorados! falou D. Quinquina; havia tanto tempo para isso!mas, enfim, de futilidades é que amor se alimenta. Querem ver uma dessas? O meupredileto está de luto e por isso exige que eu vá à festa de... com uma fita preta no cabelo,em sinal de sentimento; exige ainda que eu não valse mais, que não tome sorvetes, para nãoconstipar, que não dê dominus tecum a moço nenhum que espirrar ao pé de mim, e quejamais me ria quando ele estiver sério; e a tudo isso julga ele ter muito direito por sertenente da Guarda Nacional! Pois, por isso mesmo, ando agora de fita branca no cabelo,valso todas as vezes que posso, tomo sorvetes até não poder mais, dou dominus tecum aosmoços mesmo quando eles não espirram e não posso ver o Sr. Tenente Gusmão sério semsoltar uma gargalhada. - Olhem lá o diabinho da sonsa! murmurou consigo mesmo Augusto, embaixo dacama. - E você, mana, não diz nada?... perguntou ainda ela a D. Joaninha. - Eu?... o que hei de dizer? respondeu esta; digo que ainda não amo. - É a única que ama deveras! pensou o estudante, a quem já doíam as cadeiras detanto agachar-se. - E o Sr. Fabrício?... e o Sr. Fabrício?... exclamaram as três. - Pois bem, tornou D. Joaninha, é o único de quem gosto. - Mas que temos nós feito nesta ilha?... que triunfos havemos conseguido?...Vaidade para o lado: moças bonitas, como somos, devemos ter conquistado algunscorações! - Juro que estou completamente aturdida com os protestos de eterna paixão do Sr.Leopoldo, disse D. Quinquina; mas é uma verdadeira desgraça ser hoje moda ouvir compaciência quanta frivolidade vem à cabeça - não direi à cabeça, porque parece que os toloscomo que não a têm, porém, aos lábios de um desenxabido namorado. O tal Sr. Leopoldo...não é graça, eu ainda não vi estudante mais desestudável!... - Você, D. Joaninha, acudiu D. Clementina, tem-se regalado hoje com oincomparável Fabrício. Não lhe gabo o gosto... só as perninhas que ele tem!... - Ora, respondeu aquela; ainda não tive tempo de olhar para as pernas... mastambém você parece que não se arrepia muito com a corcova do nariz de meu primo;confessemos, minha amiga, todas nós gostamos de ser conquistadoras. - Pois confessemos... isso é verdade. - Pela minha parte não digo nada, assobiou D. Gabriela mirando-se no espelho; masenfim... eu não sei se sou bonita, mas, onde quer que esteja, vejo-me sempre cercada deadoradores; hoje, por exemplo, tenho-me visto doida... perseguiram-me constantemente 55seis... era impossível ter tempo de mangar com todos a preceito. - Mas, D. Gabriela, onde está o seu talento?... - Pois bem, que se ponha outra no meu lugar. - Alguns homens zombariam de doze de nós outras a um tempo... Houve já um quenão teve vergonha de escrever isto em um papel:Num dia, numa hora,No mesmo lugarEu gosto de amarQuarentaCinqüentaSessenta:Se mil forem belas,Amo a todas elas. - Que pateta!... - Que tolo!... - Que vaidoso! - Essa opinião segue também o Augusto! - Oh!... e esse paspalhão!... - Ei-las comigo... murmurou entre dentes o nosso estudante, estendendo o pescoço amodo de cágado. - Como lhe fica mal aquela cabeleira!... assemelha-se muito a uma preguiça. - Tem as pernas tortas. - Eu creio que ele é corcunda. - Não, aquilo é magreza. - Forte impertinente! falando é um Lucas... - Há de ser interessante dançando! - Vamos nós tomá-lo à nossa conta? - Vamos: pensemos nos meios de zombar dele cruelmente... - Pois pensemos... Mas elas não tiveram tempo de pensar, porque, neste momento, ouviu-se um gritode dor, ao qual seguiu-se viva agitação no interior daquela casa, onde inda há pouco só serespirava prazer e delícias. As quatro moças levantaram-se espantadas. - Pareceu-me a voz de minha prima Carolina, exclamou D. Joaninha. - Coitada! que lhe sucederia?... - Vamos ver. As quatro moças correram precipitadamente para fora do quarto. Augusto, que não estava menos assustado, saiu de seu esconderijo, vestiu-seapressadamente e ia, por sua vez, deixar aquele lugar, em que se vira em tantos apuros,quando deu com os olhos na carta do Sr. Joãozinho, que, com a pressa e agitação, havia D.Gabriela deixado cair. O estudante apanhou e guardou aquele interessante papel, e com prontidão ecuidado pôde, sem ser visto, escapar-se do gabinete.Um instante depois foi cuidadoso procurar saber a causa do rumor que ouvira. O grito de dor tinha sido, com efeito, soltado por D. Carolina.   

A moreninhaWhere stories live. Discover now