A Esmeralda e o Camafeu

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  Dona Carolina passou uma noite cheia de pena e de cuidados, porém já menosciumenta e despeitada; a boa avó livrou-a desses tormentos; na hora do chá, fazendo comhabilidade e destreza cair a conversação sobre o estudante amado, disse: - Aquele interessante moço, Carolina, parece pagar-nos bem a amizade que lhetemos, não entendes assim?...- Minha avó... eu não sei.- Dize sempre, pensarás acaso de maneira diversa?...A menina hesitou um instante, e depois respondeu:- Se ele pagasse bem, teria vindo domingo.- Eis uma injustiça, Carolina. Desde sábado à noite que Augusto está na cama,prostrado por uma enfermidade cruel.- Doente?! exclamou a linda Moreninha, extremamente comovida. Doente?... emperigo?...- Graças a Deus, há dois dias ficou livre dele; hoje já pôde chegar à janela, assim memandou dizer Filipe.- Oh! pobre moço!... se não fosse isso teria vindo ver-nos!...E, pois, todos os antigos sentimentos de ciúme e temor da inconstância do amante setrocaram por ansiosas inquietações a respeito de sua moléstia.No dia seguinte, ao amanhecer, a amorosa menina despertou e, buscando otoucador, há uma semana esquecido, dividiu seus cabelos nas duas costumadas belastranças, que tanto gostava de fazer ondear pelas espáduas, vestiu o estimado vestido brancoe correu para o rochedo.- Eu me alinhei, pensava ela, porque, enfim... hoje é domingo e talvez... Comoontem já pôde chegar à janela, talvez consiga com algum esforço vir ver-me.E quando o sol começou a refletir seus raios sobre o liso espelho do mar, elaprincipiou também a cantar sua balada:"Eu tenho quinze anos,E sou morena e linda"Mas, como por encanto, no instante mesmo em que ela dizia no seu canto:"Lá vem sua pirogaCortando leve os mares"um lindo batelão apareceu ao longe, voando com asa intumescida para a ilha. Com força e comoção desusadas bateu o coração a D. Carolina, que calou-se para sóempregar no batel que vinha atentas vistas, cheias de amor e de esperança. Ah! era o batelsuspirado. Quando o ligeiro barquinho se aproximou suficientemente, a bela Moreninhadistinguiu dentro dele Augusto, sentado junto de um respeitável ancião, a quem não pôdeconhecer; então, ela vendo que chegavam à praia, fingiu não tê-los sentido e continuou suabalada: 96"Enfim, abica à praiaEnfim, salta apressado..."Augusto, com efeito, saltava nesse momento fora do batel, e depois deu a mão a seupai, para ajudá-lo a desembarcar; e D. Carolina, que ainda não mostrava dar fé deles,prosseguiu seu canto, até que, quando dizia:"Quando há de ele correrSomente pra me ver..."sentiu que Augusto corria para ela. Prazer imenso inundava a alma da menina, para quepossa ser descrito; como todos prevêem, a balada foi nessa estrofe interrompida e D.Carolina, aceitando o braço do estudante, desceu do rochedo e foi cumprimentar o pai dele.Ambos os amantes compreenderam o que queria dizer a palidez de seus semblantese os vestígios de um padecer de oito dias; guardaram silêncio; não tiveram uma palavrapara pronunciar; tiveram só olhares para trocar e suspiros a verter. E para que mais?...A Sra. D. Ana recebeu com sua costumada afabilidade o pai de Augusto e abraçou aeste com ternura. Ao servir-se o almoço, ela lhe perguntou:- Por que não veio o meu neto?- Ficou para vir mais tarde, com os nossos dois amigos Leopoldo e Fabrício.- Então teremos um excelente dia.- Eu o espero.Uma hora depois o pai de Augusto e a Sra. D. Ana conferenciavam a sós, e os doisnamorados achavam-se, defronte um do outro, no vão de uma janela.E eles continuavam no silêncio, mas olhavam-se com fogo.Augusto parecia querer comunicar alguma coisa bem extraordinária à suainteressante amada, porém sempre estremecia ao entreabrir os lábios.E D. Carolina, cônscia já de sua fraqueza, e como lembrando-se dos pesares quetinha sofrido, não sabia mais servir-se de seus sorrisos com a malícia do tempo da liberdadee mostrava-se esquecida de seu viver de alegrias e travessuras.Alguma grande resolução obrigava o moço a estar silencioso, como tremendo peloêxito dela?...No fim de muito tempo eles haviam conseguido dizer-se:- O mar está bem manso.- O dia está sereno.Felizmente para eles a Sra. D. Ana os convidou a entrar no gabinete. Augusto paraaí se dirigiu tremendo, D. Carolina curiosa. Quando eles se sentaram, o ancião falou:- Augusto, eu acabo de obter desta respeitável senhora a honra de te julgar digno depretenderes a mão de sua linda neta, agora resta que alcances o sim da interessante pessoaque amas. Fala.Tanto D. Carolina como o pobre estudante ficaram cor de nácar; houve bons cincominutos de silêncio: o pai de Augusto instou para que ele falasse. E o bom do rapaz não fezmais que olhar para a moça, com ternura, abrir a boca e fechá-la de novo, sem dizerpalavra.A Sra. D. Ana tomou então a palavra e disse sorrindo-se:- Enfim, é necessário que os ajudemos. Carolina, o Sr. Augusto te ama e te quer 97para sua esposa; tu que dizes?...Nem palavra.Foi preciso que se repetisse pela terceira vez a pergunta, para que a menina, semlevantar a cabeça, murmurasse apenas:- Minha avó... eu não sei.- Pois creio que ninguém melhor que tu o poderá saber. Desejas que eu responda emteu nome?...A bela Moreninha pensou um momento... não pôde vencer-se, sorriu-se como sesorria dantes, e erguendo a cabeça, disse:- Eu rogo que daqui a meia hora se vá receber a minha resposta na gruta do jardim.- Quererás consultar a fonte? Pois bem, iremos.D. Carolina saiu com ar meio acanhado e meio maligno. Passados alguns instantes aSra. D. Ana, como quem estava certa do resultado da meia hora de reflexão, e já por talpodia gracejar com os noivos, disse a Augusto:- O Sr. não quer refletir também no jardim?O estudante não esperou segundo conselho e para logo dirigiu-se à gruta. D.Carolina estava sentada no banco de relva, e seu rosto, sem poder ocultar a comoção e opejo que lhe produziu o objeto de que se tratava, tinha, contudo, retomado o antigo vernizdo prazer e malícia. Vendo entrar o moço disse:- Eu creio que ainda se não passou meia hora.- Ah! podia eu esperar tanto tempo?...- Acaso veio perguntar-me alguma coisa?...- Não, minha senhora, eu só venho ouvir a minha sentença.- Então... pede-me para sua esposa?...- A senhora o ouviu há pouco.- Pois bem, Sr. Augusto, veja como verificou-se o prognóstico que fiz do seu futuro!Não se lembra que aqui mesmo lhe disse "que não longe estava o dia em que o Sr. havia deesquecer sua mulher"?- Mas eu nunca fui casado... murmurou o estudante!...- Oh! isso é uma recomendação contra a sua constância!...- E quem tem culpa de tudo, senhora?- Muito a tempo ainda me lança em rosto a parte que tenho na sua infidelidade, pois,eu emendarei a mão agora. O senhor há de cumprir a palavra que deu há sete anos!Augusto recuou dois passos.- O senhor é um moço honrado, continuou a cruel Moreninha, e, portanto, cumpriráa palavra que deu, e só casará com sua desposada antiga.- Oh!... agora já é impossível!- Ela deve ser uma bonita moça!... teria razão de queixar-se contra mim, se euroubasse um coração que lhe pertence... até por direito de antiguidade; ora eu, apesar de sertravessa, não sou má, e, portanto, o senhor só será esposo dessa menina.- Jamais!- Juro-lhe que há de sê-lo.- E quem me poderá obrigar?- Eu, pedindo.- A senhora?- E a honra, mandando.- Para que, pois, animou o amor que pela senhora sinto?... 98- Para satisfazer as minhas vaidades de moça, somente para isso. Eu o ouvi gabar-sede que nenhuma mulher seria capaz de conservá-lo em amoroso enleio por mais de trêsdias, e desejei vingar a injúria feita ao meu sexo. Trabalhei, confesso que trabalhei porprendê-lo; fiz talvez mais do que devia, só para ter a glória de perguntar-lhe uma vez, comoagora o faço: "Então, senhor, quem venceu: o homem ou a mulher?..."- Foi a beleza.- Porém já passou o tempo do galanteio, e eu devo lembrar-lhe o dever que com apaixão esquece. Escute: na idade de treze anos o senhor amou uma linda e travessa menina,que contava apenas sete.- Já a senhora em outra ocasião me disse isso mesmo.- Junto ao leito de um moribundo jurou que havia de amá-la para sempre.- Foi um juramento de criança.- Embora, foi um juramento; trocou com ela aí mesmo prendas de amor, e quando amenina lhe apresentar a que recebeu e lhe pedir a que lhe ofereceu e o senhor aceitou?...- Ah! senhora!...- Quando o velho moribundo, dando-lhe o breve de cor branca disse: tomai estebreve, cuja cor exprime a candura da alma daquela menina; ele contém o vosso camafeu; setendes bastante força para ser constante e amar para sempre aquele belo anjo, dai-lho, paraque ela o guarde com desvelo. Por que deu o senhor o breve à menina?...- Porque eu era um louco, uma criança?- E nem ao menos se lembra de que o velho disse com voz inspirada: "Deus pagasempre a esmola que se dá ao pobre!... lá no futuro vós o sentireis"? Não tem o senhoresperança de ver realizar-se essa bela profecia? não se lembra de ouvi-la? Pois ela sooubem docemente no meu coração quando às escondidas, a escutei repetida nesta gruta porseus lábios.- Oh! mas por que Deus não me prendeu a essa menina nos laços indissolúveis,antes que eu visse o lindo anjo desta ilha?- E como, senhor, posso eu acreditar nos seus protestos de ternura e constância, se jáo vejo faltar à fé a uma outra?... Senhor! senhor! o que foi que prometeu há sete anospassados?...- Então eu não pensava no que fazia.- E agora pensa no que quer fazer?- Penso que sou um desgraçado, um louco!... penso que é uma barbaridadeinqualificável que, enquanto eu padeço, e sofro mil torturas, deixe a senhora brincar nosseus lábios o sorriso com que costuma encantar para matar. Penso...- Acabe!- Penso que devo fugir para sempre desta ilha fatal, deixar aquela cidade detestável,abandonar esta terra de minha pátria, onde não posso ser outra vez feliz!... penso que alembrança do meu passado faz a minha desgraça, que o presente me enlouquece e me mata,que o futuro... Oh! já não haverá futuro para mim! Adeus senhora!...- Então, parte?...- E para sempre.D. Carolina deixou cair uma lágrima e falou ainda, mas já com voz fraca e trêmula:- Sim, deve partir... vá... Talvez encontre aquela a quem jurou amor eterno... Ah!senhor! nunca lhe seja perjuro.- Se eu encontrasse!...- Então?... que faria?... 99- Atirar-me-ia a seus pés, abraçar-me-ia com eles e lhe diria: "Perdoai-me, perdoaime,senhora, eu já não posso ser vosso esposo! tomai a prenda que me deste..."E o infeliz amante arrancou debaixo da camisa um breve, que convulsivamenteapertou na mão.- O breve verde!... exclamou D. Carolina, o breve que contém a esmeralda!...- Eu lhe diria, continuou Augusto: "recebei este breve que já não devo conservar,porque eu amo outra que não sois vós, que é mais bela e mais cruel do que vós!..."A cena se estava tornando patética; ambos choravam e só passados alguns instantesa inexplicável Moreninha pôde falar e responder ao triste estudante.- Oh! pois bem, disse; vá ter com sua desposada, repita-lhe o que acaba de dizer, ese ela ceder, se perdoar, volte que eu serei sua... esposa.- Sim... eu corro... Mas, meu Deus, onde poderei achar essa moça a quem não torneia ver, nem poderei conhecer?... onde meu Deus?... onde?...E tornou a deixar correr o pranto, por um momento suspendido.- Espere, tornou D. Carolina, escute, senhor. Houve um dia, quando a minha mãeera viva, em que eu também socorri um velho moribundo. Como o senhor e sua camarada,matei a fome de sua família e cobri a nudez de seus filhos; em sinal de reconhecimentotambém este velho me fez um presente: deu-me uma relíquia milagrosa que, asseverou-meele, tem o poder uma vez na vida de quem a possui, de dar o que se deseja; eu cosi essarelíquia dentro de um breve; ainda não lhe pedi coisa alguma, mas trago-a sempre comigo;eu lha cedo... tome o breve, descosa-o, tire a relíquia e à mercê dela encontre sua antigaamada. Obtenha o seu perdão e me terá por esposa.- Isto tudo me parece um sonho, respondeu Augusto, porém, dê-me, dê-me essebreve!A menina, com efeito, entregou o breve ao estudante, que começou a descosê-loprecipitadamente. Aquela relíquia, que se dizia milagrosa, era sua última esperança; e,semelhante ao náufrago que no derradeiro extremo se agarra à mais leve tábua, ele seabraçava com ela. Só falta a derradeira capa do breve... ei-la que cede e se descose... saltauma pedra... e Augusto, entusiasmado e como delirante, cai aos pés de D. Carolina,exclamando:- O meu camafeu!... o meu camafeu!...A senhora D. Ana e o pai de Augusto entram nesse instante na gruta e encontram ofeliz e fervoroso amante de joelhos e a dar mil beijos nos pés da linda menina, que tambémpor sua parte chorava de prazer.- Que loucura é esta? perguntou a senhora D. Ana.- Achei minha mulher!... bradava Augusto; encontrei minha mulher!- Que quer dizer isto, Carolina?...- Ah! minha boa avó!... respondeu a travessa Moreninha ingenuamente: nós éramosconhecidos antigos.   

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