Capítulo 7

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Saímos das cachoeiras e voltamos na direção de Thunder Bay, deslizando sob postes de
luz âmbar e passando rápido demais por placas de trânsito borradas. Chase e Mike riem,
com as janelas abertas, falando de Anna, fazendo sua lenda crescer cada vez mais. O
sangue em meus ouvidos canta tão alto que estou me esquecendo de olhar as placas de
rua, esquecendo de mapear o caminho.
Foi preciso algum jogo de cintura para que eles saíssem da festa, para que
convencessem os outros a continuar bebendo e se divertindo no limite do mundo.
Carmel até precisou usar um truque do tipo "Ei, o que é aquilo ali?" com Natalie e Katie,
antes de entrar depressa no SUV de Will. Mas, agora, estamos rasgando o ar de verão.
—É uma viagem longa —Will me diz, e lembro que ele foi o motorista escolhido no
ano passado também, na festa da cachoeira Trow bridge. Ele me deixa curioso; sua
situação de motorista da turma leva a imaginar que ele anda com esses manés só para se
encaixar no grupo, mas ele é esperto demais, e algo em seu jeito faz parecer que é ele
quem dá as cartas sem que os outros saibam. —Fica meio longe. Para o norte.
—Oque nós vamos fazer quando chegarmos lá? —pergunto, e todos riem.
Will encolhe os ombros.
—Beber umas cervejas, jogar umas garrafas na casa. Sei lá. Isso importa?
Não, não importa. Eu não vou matar Anna esta noite, na frente de toda essa gente. Só
quero estar lá. Quero senti-la atrás da janela, observando, olhando para mim, ou talvez
se afastando para o fundo da casa. Se eu for honesto comigo mesmo, tenho de admitir
que Anna Korlov entrou em minha mente como poucos fantasmas antes dela. Não sei
por quê. Além dela, apenas outro fantasma ocupou meus pensamentos desse jeito, trouxe
tamanha agitação de sentimentos, e foi o fantasma que matou meu pai.
Estamos seguindo perto do lago agora, e ouço o lago Superior sussurrar para mim, através das ondas, sobre todas as coisas mortas que ele esconde sob a superfície, que
olham das profundezas com olhos lamacentos e faces mordidas por peixes. Elas podem esperar.
Will vira à direita em uma estrada de terra, e os pneus do SUV resmungam e nos
jogam de um lado para outro. Quando levanto os olhos, vejo a casa, abandonada há anos
e começando a se inclinar, apenas uma forma preta, atarracada, no escuro. Ele para no
que antes era o começo da entrada para carros, e eu saio. Os faróis brilham na base da
casa, iluminando a tinta cinza descamada, as tábuas planas e apodrecidas, uma varanda
tomada por mato. Avelha entrada de carros era longa, e estou a pelo menos trinta metros
da porta da frente.
— Tem certeza que é esta? — ouço Chase sussurrar, mas eu sei que é. Posso dizer
pelo modo como a brisa move meus cabelos e roupas, mas não perturba mais nada. A
casa está tensamente controlada, nos observando. Dou um passo adiante. Depois de
alguns segundos, os passos hesitantes dos outros rangem no cascalho atrás de mim.
Enquanto subimos pelo caminho, eles me contam que Anna mata todos que entram
na casa. Falam dos andarilhos que pararam por ali, em busca de um lugar para passar a
noite, e acabaram sendo eviscerados assim que se deitaram. Claro que eles não têm como
saber disso, embora provavelmente seja verdade.
Um som seco vem de trás de mim, seguido por passadas rápidas.
— Isso é ridículo — Carmel reclama. A noite ficou mais fria, e ela vestiu um
casaquinho cinza sobre a blusa de alças. Suas mãos estão enfiadas nos bolsos da saia
cáqui, e os ombros, curvados para a frente. —Devíamos ter ficado na festa.
Ninguém a ouve. Eles estão tomando grandes goles de cerveja e falando alto demais
para encobrir o nervosismo. Eu me aproximo da casa em passos cautelosos, movendo o
olhar de uma janela para outra, ansioso por algum movimento que não deveria estar ali.
Abaixo quando uma lata de cerveja passa voando sobre minha cabeça, aterrissa no chão e
ricocheteia em direção à varanda.
—Anna! Ei, Anna! Saia para brincar coma gente, sua puta morta!
Mike está rindo, e Chase joga outra cerveja para ele. Mesmo na crescente escuridão,
posso ver que o rosto dele está vermelho por efeito do álcool. Ele começa a oscilar  quando anda.
Desvio o olhar deles para a casa. Por mais que eu tenha vontade de investigar mais,
vou parar. Isso não está certo. Agora que eles estão aqui, e assustados, estão rindo dela,
tentando transformá-la em uma piada. Esmagar as latas de cerveja na cabeça deles parece uma boa ideia — e, sim, eu percebo a hipocrisia de querer defender algo que estou
tentando matar.
Olho para Carmel atrás deles, dando passos hesitantes, apertando os braços em volta
do corpo para se proteger do frio da brisa do lago. Seus cabelos loiros estão esvoaçando
à luz prateada, como fios de teia de aranha em volta do rosto.
— Ei, pessoal, vamos embora. A Carmel está ficando nervosa, e não tem nada lá
dentro além de aranhas e ratos. —Retorno, mas Mike e Chase me seguram cada um por
um braço. Noto que Will recuou para ficar com Carmel e está falando baixinho com ela,
inclinando-se e gesticulando na direção do carro estacionado. Ela sacode a cabeça e dá um
passo em nossa direção, mas ele a segura.
— De jeito nenhum que a gente vai embora sem dar uma olhada lá dentro — diz
Mike. Ele e Chase me viram e me levam caminho acima, como se fossem guardas
escoltando um prisioneiro, um em cada ombro.
—Tudo bem. —Não discuto tanto quanto talvez devesse. Porque eu quero mesmo
olhar mais de perto. Só preferia que eles não estivessem aqui quando eu fizer meu
trabalho. Aceno para Carmel para lhe dizer que está tudo bem e me solto dos dois caras.
Quando meu pé toca a primeira tábua apodrecida dos degraus da varanda, quase
posso sentir a casa se contrair, como se estivesse inspirando, despertando, depois de
tanto tempo intocada. Subo os dois últimos degraus e me vejo ali, sozinho, diante do
cinza-escuro da porta. Gostaria de ter uma lanterna ou uma vela. Não sei dizer de que
cor a casa foi no passado. De longe, parecia cinza, com a tinta descascada em fatias
cinzentas caídas no chão, mas, agora que estou mais perto, a pintura descamada parece
apodrecida e preta. Oque é impossível. Ninguém pinta uma casa de preto.
As altas janelas dos dois lados da porta estão cobertas de sujeira e terra. Vou até a
janela esquerda e esfrego a palma da mão no vidro, traçando um círculo rápido. Dentro,
a casa está praticamente vazia, exceto por alguns móveis espalhados. Há um sofá no
centro do que deve ter sido uma sala de estar, coberto por um lençol branco. Os restos
de um candelabro pendem do teto.
Apesar de escuro, posso enxergar o interior com facilidade. Ele é iluminado em tons
de cinza e azul que parecem vir do nada. Há algo estranho na luz que não consigo
processar de imediato, até perceber que nada está lançando sombra.
Um sussurro me faz lembrar que Mike e Chase estão aqui. Começo a me virar para
dizer a eles que não há nada que eu não tenha visto antes e que agora podemos, por
favor, voltar para a festa, mas, pelo reflexo no vidro da janela, vejo que Mike está segurando um pedaço de tábua quebrada, mirando minha cabeça com os braços
levantados... e tenho a impressão de que não vou dizer nada por algum tempo.

Anna Vestida de SangueWhere stories live. Discover now