Capítulo 20

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— O que vamos fazer?
Isso é o que Thomas não para de perguntar. Carmel ligou duas vezes, mas não atendi. O
que vamos fazer? Não tenho a menor ideia. Só estou aqui, sentado em silêncio no banco
do passageiro, enquanto Thomas dirige para lugar nenhum. Deve ser isso que chamam
de catatonia. Não há nenhum pensamento de pânico passando pela minha cabeça. Não
estou fazendo planos nem avaliando a situação. Há apenas uma repetição mansa e rítmica.
Ele está aqui. Ele está aqui.
Um de meus ouvidos capta a voz de Thomas. Ele está falando no telefone com
alguém, explicando o que encontramos. Deve ser Carmel. Ela pode ter desistido de falar
comigo e ligado para ele, sabendo que teria resposta.
—Não sei —diz ele. —Acho que ele surtou. Acho que pode ter pirado.
Meu rosto se contrai como se quisesse reagir e enfrentar o desafio, mas o
movimento é sem energia, como depois de uma anestesia no dentista. Os pensamentos
gotejam em meu cérebro, lentamente. Will e Chase estão mortos. A coisa que comeu meu
pai. Thomas está dirigindo para lugar algum.
Nenhum desses pensamentos se conecta. Nenhum deles faz muito sentido. Mas pelo
menos não estou com medo. Então a torneira começa a gotejar mais depressa, e Thomas
grita meu nome e bate no meu braço, abrindo efetivamente o fluxo de água outra vez.
— Me leve para a casa da Anna — peço. Ele parece aliviado. Pelo menos eu falei
alguma coisa. Pelo menos tomei alguma decisão, dei alguma ordem.
— Nós vamos — eu o ouço dizer ao telefone. — É, estamos indo para lá agora.
Encontre a gente lá. Não entre se ainda não tivermos chegado!
Ele entendeu errado. Como posso explicar? Ele não sabe como meu pai morreu.
Não sabe o que isso significa — que a coisa finalmente me achou. Ela conseguiu me encontrar, agora, quando estou praticamente indefeso. E eu nem sabia que estava me
procurando. Eu quase poderia sorrir. O destino está me pregando uma peça.
Os quilômetros passam como um borrão. Thomas está falando qualquer coisa para
me animar. Chega à entrada da casa de Anna e sai do carro. Minha porta se abre alguns
segundos depois, e ele me puxa para fora pelo braço.
—Vamos lá, Cas —diz. Eu olho para ele com ar sério. —Você está pronto? O que  vai fazer?
Não sei o que dizer. O estado de choque está perdendo o charme. Quero meu
cérebro de volta. Será que ele não pode dar uma sacudida, como um cachorro, e voltar  ao trabalho?
Nossos pés esmagam o cascalho frio. Minha respiração é visível em uma nuvenzinha
brilhante. À minha direita, as nuvenzinhas de Thomas surgem muito mais depressa, em baforadas nervosas.
—Você está bem? —ele pergunta. —Cara, nunca vi nada parecido com aquilo. Não
acredito que ela... Aquilo foi...—Ele para e se inclina para a frente. Está lembrando e, se
lembrar com muita intensidade, ou bem demais, é capaz de vomitar. Eu estendo um
braço para apoiá-lo. — Acho que a gente devia esperar a Carmel — sugere. E então me  puxa para trás.
A porta de Anna se abriu. Ela está saindo para a varanda, suavemente, como uma
pomba. Olho para seu vestido de primavera. Ela não faz nenhum movimento para se
proteger, embora o vento deva estar batendo nela como placas de gelo afiadas. Seus
ombros nus e mortos não sentem frio.
—Você trouxe? —ela pergunta. —Você o encontrou?
—Você trouxe o quê? —Thomas sussurra. —Do que ela está falando?
Sacudo a cabeça como resposta para ambos e subo os degraus da varanda. Passo
direto por ela para dentro da casa, e ela me segue.
—Cas —ela diz—, o que aconteceu? —Seus dedos roçam meu braço.
—Para trás, garota! —Thomas grita. Ele de fato a empurra e se enfia entre nós. Está
fazendo aquela coisa ridícula de sinal da cruz com os dedos, mas eu não o culpo por
isso. Ele está surtado. Eu também estou.
—Thomas —intervenho. —Não foi ela.
—O quê?
—Não foi ela que fez aquilo.
Olho para ele com expressão calma, para que possa ver que o choque está passando; estou voltando a ser eu mesmo.
— E para de fazer esse negócio com os dedos — acrescento. — Ela não é um
vampiro e, mesmo que fosse, não acho que seus dedos cruzados iam adiantar alguma  coisa.
Ele baixa as mãos. O alívio relaxa os músculos de seu rosto.
—Eles estão mortos —conto para Anna.
—Quem está morto? E por que você não vai me acusar de novo?
Thomas pigarreia.
— Bom, ele não vai, mas eu vou. Onde você estava na noite passada e hoje de  manhã?
—Eu estava aqui —ela responde. —Estou sempre aqui.
Lá fora, ouço o barulho de pneus no cascalho. Carmel chegou.
—Tudo ia muito bem enquanto você estava contida — Thomas contrapõe. —Mas,
agora que está solta, talvez você ande por toda parte. Por que não andaria? Por que ficar
aqui, onde você esteve presa por mais de cinquenta anos? —Ele olha em volta, nervoso,
embora a casa esteja quieta. Não há nenhuma indicação de espíritos raivosos. —Eu nem
quero estar aqui agora.
Passos ressoam na varanda, e Carmel entra abruptamente, segurando, sabe-se lá por
quê, um taco de beisebol de metal.
— Sai de perto deles! — ela grita a plenos pulmões. Em seguida gira o taco em um
arco amplo e acerta o rosto de Anna. O efeito é algo como bater no Exterminador do
Futuro com um cano de chumbo. Anna parece apenas um pouco surpresa, depois um
pouco insultada. Acho que vejo Carmel engolir em seco.
—Está tudo bem—digo, e o taco abaixa um pouco. —Não foi ela.
—Como você sabe? —Carmel pergunta. Seus olhos estão brilhantes, e o taco treme
em suas mãos. Ela está cheia de adrenalina emedo.
— Como ele sabe o quê? — Anna intervém. — Do que vocês estão falando? O que
aconteceu?
—Will e Chase estão mortos —respondo.
Anna baixa os olhos. Depois pergunta:
—Quem é Chase?
Será que as pessoas poderiam parar de me fazer tantas malditas perguntas? Ou será
que, pelo menos, alguém poderia responder por mim?
— É um dos caras que ajudaram o Mike a me enganar, na noite em que... — Faço uma pausa. —Ele era o outro cara perto da janela.
—Ah.
Quando percebe que não vou falar mais, Thomas conta tudo a Anna. Carmel se
encolhe nas partes sangrentas. Thomas olha para ela como se pedisse desculpas, mas
continua falando. Anna escuta eme observa.
—Quem faria isso? —Carmel pergunta, furiosa. —Vocês tocaram em alguma coisa?
Alguém viu vocês? —Está olhando para Thomas e para mim.
— Não. A gente estava de luvas, e acho que não tiramos nada do lugar enquanto
estávamos lá—Thomas responde. A voz deles é controlada, embora um pouco rápida.
Eles voltaram a se concentrar nos aspectos práticos, o que facilita as coisas. Mas não
posso deixar que fique assim. Não entendo o que está acontecendo, e temos que
descobrir. Eles precisam saber de tudo, ou pelo menos de tudo que eu suportar contar.
— Tinha tanto sangue — Thomas diz com desalento. — Quem faria isso? Por que
alguém...?
—Não é bem quem. É mais o quê — corrijo. Estou cansado de repente. O encosto
do sofá coberto como lençol parece muito convidativo. Eu me recosto nele.
—Um o quê? —Carmel repete.
— É. Uma coisa. Não uma pessoa. Não mais. É a mesma coisa que desmembrou
aquele homem no parque. —Engulo em seco. —As marcas de mordidas provavelmente
foram isoladas, para deixar os indícios em sigilo. Eles não divulgaram essa parte. Foi por
isso que eu não soube antes.
— Marcas de mordidas — Thomas murmura, arregalando os olhos. — Aquelas
marcas eram mordidas? Não é possível. Eram grandes demais. Tinha pedaços enormes
arrancados.
— Eu já vi isso antes — digo. — Não, não é verdade. Eu nunca vi realmente. E não
sei o que isso está fazendo aqui agora, dez anos depois.
Carmel está distraidamente batendo a ponta do taco de metal no chão; o som ressoa
como um sino desafinado pela casa vazia. Sem dizer nada, Anna passa por ela, pega o
taco e o coloca sobre as almofadas do sofá.
— Desculpe — Anna murmura e encolhe os ombros para Carmel, que cruza os
braços e faz o mesmo gesto.
— Tudo bem. Eu nem percebi que estava fazendo isso. E... desculpe por... bater em  você.
— Não doeu. — Anna vem para o meu lado. — Cassio, então você sabe o que essa coisa é?
—Quando eu tinha sete anos, meu pai foi atrás de um fantasma em Baton Rouge, na
Louisiana. — Baixo os olhos para o chão, para os pés de Anna. — Ele nunca mais
voltou. A coisa o pegou.
Anna toca meu braço.
—Quer dizer que ele era um caçador de fantasmas, como você.
— Como todos os meus ancestrais — respondo. — Ele era como eu, e melhor do
que eu. — A ideia de que o assassino de meu pai esteja aqui faz minha cabeça girar. Isso
não deveria acontecer assim. Eu é que tinha de ir atrás dele. Deveria primeiro estar
pronto, e ter todas as armas, e caçá-lo até o fim. —Mesmo assim, aquilo o matou.
—Como? —Anna pergunta com delicadeza.
—Não sei. —Minhas mãos estão tremendo. —Eu achava que ele tinha se distraído.
Ou caído numa emboscada. Cheguei até a pensar que o athame podia ter parado de
funcionar, que depois de um certo tempo ele simplesmente para de funcionar para a
pessoa, quando o número de usos permitido se esgota. Achei que talvez fosse eu a causa,
que ele tivesse morrido apenas por eu ter crescido e estar pronto para ficar no lugar dele.
—Isso não é verdade—diz Carmel. —É ridículo.
—É, sei lá, talvez seja, talvez não. Quando você é uma criança de sete anos e seu pai
morre e o corpo parece ter sido levado para um maldito banquete de tigres siberianos,
você pensa um monte de merda ridícula.
—Ele foi comido? —Thomas pergunta.
—É. Ele foi comido. Eu ouvi os policiais descrevendo. Grandes pedaços arrancados
do corpo dele, como o Will e o Chase.
— Isso não quer dizer necessariamente que seja a mesma coisa — Carmel raciocina.
—É meio que uma grande coincidência, não é? Depois de dez anos?
Não digo nada. Não posso discordar disso.
—Então talvez agora seja algo diferente—Thomas sugere.
—Não. É ele. É a mesma coisa; eu sei que é.
—Cas —diz ele. —Como você sabe?
Aperto os olhos para ele.
— Ei, eu posso não ser um bruxo, mas também tenho meus truques. Eu sei, está
bem? E, pela minha experiência, não existe exatamente um batalhão de fantasmas que
comem carne.
—Anna—Thomas questiona gentilmente—, você nunca comeu nada?
Ela sacode a cabeça.
—Nada.
— Além disso — acrescento —, eu ia atrás dele. Sempre foi meu plano. E dessa vez
eu ia mesmo. —Dou uma olhada para Anna. —Quer dizer, eu achei que ia. Assim que
terminasse aqui. Talvez ele soubesse.
—Ele veio atrás de você—Anna diz, pensativa.
Esfrego os olhos, tentando refletir. Estou exausto. Totalmente acabado. O que não
faz sentido, porque dormi como uma pedra na noite passada, talvez pela primeira vez em
uma semana.
E então me vem uma luz.
—Os pesadelos —lembro. —Ficaram piores desde que cheguei aqui.
—Que pesadelos? —pergunta Thomas.
— Eu achei que eram só sonhos. Alguém se inclinando sobre mim. Mas, todo esse
tempo, deve ter sido como um portento.
—Como o quê? —pergunta Carmel.
— Como um psicopompo, um mediador entre os mundos. Sonhos proféticos.
Sonhos premonitórios. Uma advertência. — Aquela voz áspera, ecoada da terra através
de um zumbido de serra elétrica. Aquele sotaque, quase cajun, quase caribenho. —Tinha
um cheiro —descrevo, enrugando o nariz. —Uma espécie de fumaça doce.
— Cas — diz Anna. Ela parece alarmada. — Eu senti cheiro de fumaça quando fui
cortada com o seu athame. Você me disse que devia ser só uma lembrança do cachimbo
de Elias. Mas e se não fosse?
—Não —respondo. Mas mal acabo de falar e lembro um de meus pesadelos. Você
perdeu o athame
, a coisa disse. Você o perdeu, naquela voz semelhante a plantas
apodrecidas e lâminas de barbear.
O medo sobe com dedos gelados por minhas costas. Meu cérebro está tentando fazer
uma conexão, tateando com cuidado, dendrito buscando dendrito. A coisa que matou
meu pai praticava vodu. Isso eu sempre soube. E o que é o vodu, em essência?
Há algo aqui, algum conhecimento logo além do alcance da luz. E tem a ver com
alguma coisa que Morfran disse.
Carmel levanta a mão, como se estivesse em sala de aula.
— Voz da razão — diz ela. — O que quer que essa coisa seja, e qualquer que possa
ser ou não a ligação com o punhal, ou com o Cas, ou com o pai do Cas, ela matou pelo
menos duas pessoas e comeu boa parte delas. E então, o que vamos fazer?
A sala fica em silêncio. Não sirvo para nada sem meu athame. Até onde sei, a coisa
pode ter pegado a faca de Will, e agora eu meti Thomas e Carmel em uma confusão
gigantesca.
—Eu estou sem o meu punhal —choramingo.
—Não comece com isso —diz Anna. Ela se afasta de mim com postura decidida. —
Artur sema Excalibur ainda era Artur.
— Exato — Carmel concorda. — Podemos não ter o athame, mas, se não estou
enganada, temos ela — indica Anna com a cabeça —, e isso é algo considerável. O Will e
o Chase estão mortos. Nós sabemos a causa disso. Podemos ser os próximos. Portanto
vamos tratar de erguer as defesas e agir! 

Anna Vestida de SangueWhere stories live. Discover now