Capítulo 12

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Acordo molhado de suor. Eu estava sonhando, sonhando com algo que se inclinava
sobre mim. Algo com dentes tortos e dedos em gancho. Algo comum hálito que cheirava
como se estivesse comendo pessoas havia décadas sem escovar os dentes nos intervalos.
Meu coração está pulando no peito. Procuro sob o travesseiro o athame de meu pai e,
por um segundo, poderia jurar que meus dedos se fecham em uma cruz, uma cruz com
uma cobra áspera enrolada. E então o punho de minha faca está lá, firme e forte em sua
bainha de couro. Pesadelos de merda.
Meu coração começa a desacelerar. Olho para o chão e vejo Tybalt, que me encara
com um olhar zangado e a cauda eriçada. Talvez ele estivesse dormindo sobre meu peito
e tenha sido catapultado para fora quando acordei. Não lembro, mas gostaria de ter feito
isso, porque seria hilário.
Penso em me deitar de novo, mas desisto. Há uma sensação tensa e incômoda em
todos os meus músculos e, embora eu esteja cansado, o que realmente tenho vontade de
fazer é me exercitar um pouco: algum levantamento de pesos e uma pequena corrida com
barreiras. Lá fora, o vento deve estar soprando, porque esta casa velha range e geme
sobre as fundações, e as tábuas do assoalho se movem como dominós, produzindo o
som de passos rápidos.
O relógio ao lado de minha cama marca 3h47min. Por um segundo, não consigo
lembrar que dia é hoje. Mas é a noite de sábado para domingo. Então, pelo menos, não
tenho aula amanhã. As noites estão começando a se juntar. Desde que chegamos aqui,
talvez eu tenha tido três boas noites de sono.
Saio da cama sem pensar e visto jeans e camiseta, depois coloco o athame no bolso
de trás da calça e desço as escadas. Paro apenas para calçar os sapatos e pegar as chaves
do carro de minha mãe na mesinha de centro. Em seguida estou dirigindo pelas ruas escuras sob a luz da lua crescente. Sei para onde estou indo, embora não me lembre de
ter tomado essa decisão.

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Estaciono no fim da entrada cheia de mato da casa de Anna e saio do carro, ainda me
sentindo praticamente sonâmbulo. A tensão do pesadelo está inteira em meus músculos.
Nem sequer escuto o som de meus próprios pés nos degraus oscilantes da varanda ou
sinto os dedos em torno da maçaneta. Então dou um passo para dentro e caio.
O saguão desapareceu. Em vez disso, desabo uns dois metros e meio e aterrisso de
cara na terra fria e poeirenta. Algumas respirações profundas trazem o ar de volta a meus
pulmões e, num reflexo, encolho as pernas de encontro ao corpo, sem pensar em nada a
não ser Que porra é essa? Quando meu cérebro se liga outra vez, espero em uma
posição semi agachada e testo as pernas. Por sorte, as duas estão funcionando bem, mas
que lugar é este? Meu corpo parece a ponto de ficar sem adrenalina. Onde quer que eu
esteja, é escuro e tem um cheiro ruim. Tento manter a respiração rasa para não entrar em
pânico e também para não aspirar muito daquele ar. Ele fede a umidade e podridão.
Muitas coisas morreram aqui, ou morreram em outro lugar e foram jogadas aqui.
Esse pensamento me faz pegar o punhal no bolso de trás, meu afiado porto seguro
rasgador de gargantas, enquanto olho em volta. Reconheço a luz cinza etérea da casa; está
vindo de cima, através do que imagino que sejam tábuas de assoalho. Agora que meus
olhos se ajustaram, vejo que as paredes e o piso são parte terra e parte pedras ásperas.
Mentalmente, revejo a mim mesmo subindo os degraus da varanda e entrando pela
porta. Como fui parar no porão?
— Anna? — chamo baixinho, e o chão sacode sob meus pés. Eu me equilibro
segurando na parede, mas a superfície sob minha mão não é terra. É mole. E úmida. E
respira.
O corpo de Mike Andover está semi mergulhado na parede. Estou apoiando a mão
em sua barriga. Seus olhos estão fechados, como se estivesse dormindo. Sua pele parece
mais escura e mais flácida do que antes. Ele está apodrecendo e, pela maneira como está
enfiado nas pedras, tenho a impressão de que a casa o está absorvendo lentamente. Ela o
está digerindo.
Eu me afasto alguns passos. Prefiro realmente que ele não me conte sobre isso.
Um som leve de pés se arrastando chama minha atenção. Eu me viro e vejo uma
figura coxeando em minha direção, como se estivesse bêbada, oscilando e cambaleante. O choque de não estar sozinho é momentaneamente eclipsado pelo revirar de meu
estômago. É um homem, e ele fede a urina e bebida. Está vestido em roupas sujas, um
velho casaco longo em farrapos e calças com buracos nos joelhos. Antes que eu possa
sair do caminho, uma expressão de medo altera seu rosto. Seu pescoço gira sobre os
ombros como se fosse uma tampa de garrafa. Escuto o longo ruído de esmigalhamento da
coluna vertebral, e ele desaba no chão a meus pés.
Começo a me perguntar se estou mesmo acordado, afinal. Então, por alguma razão, a
voz de meu pai borbulha entre minhas orelhas.
Não tenha medo do escuro, Cas. Mas não deixe que lhe digam que tudo o que
está ali no escuro também está no claro. Não é assim.
Obrigado, pai. Mais uma das pérolas de sabedoria arrepiantes que você
compartilhou comigo.
Mas ele estava certo. Bem, sobre a última parte, pelo menos. Meu sangue está
pulsando forte e posso sentir a veia jugular no pescoço. E então escuto Anna falar.
— Está vendo o que eu faço? — ela pergunta, mas, antes que eu tenha tempo de
responder, me cerca de corpos, mais do que posso contar, espalhados pelo chão como
lixo e empilhados até o teto, braços e pernas enlaçados em uma trança grotesca. O fedor é
horrível. Pelo canto do olho, vejo um deles se mover, mas, quando olho melhor,
percebo que é o movimento de insetos se alimentando do corpo, se mexendo sob a pele
e a erguendo em pequenas tremulações impossíveis. Apenas uma coisa nos corpos se
move por si própria: os olhos deslizam lentamente para a frente e para trás, cheios de
muco e leitosos, como se estivessem tentando ver o que está acontecendo, mas não
tivessem mais energia.
—Anna—digo baixinho.
—Estes não são os piores —ela rosna entredentes. Só pode estar brincando. Alguns
destes corpos sofreram coisas terríveis. Faltam-lhes membros, ou todos os dentes. Estão
cobertos de sangue seco, de uma centena de cortes com crostas. E muitíssimos deles são
jovens. Rostos como o meu, ou mais novos que o meu, com as faces arrancadas e bolor
nos dentes. Quando olho para trás e percebo que os olhos de Mike se abriram, sei que
tenho de sair daqui. Dane-se a caça a fantasmas, para o inferno coma herança familiar, eu
não vou ficar nem mais um minuto em uma sala que vai se enchendo de corpos.
Não sou claustrofóbico, mas, neste exato momento, sinto que preciso dizer isso a
mim mesmo, e muito alto. Então vejo o que não tive tempo de ver antes. Há uma escada
que sobe para o nível principal. Não sei como ela me fez descer direto ao porão e não me importo. Só quero voltar para o saguão de entrada. E, quando estiver lá, quero esquecer
o que está morando sob meus pés.
Corro para as escadas, e é quando ela envia a água, jorrando e subindo de todas as
partes, pelas fendas nas paredes, pelas frestas do piso. É suja, cheia de lodo e, em questão
de segundos, está chegando a minha cintura. Começo a entrar em pânico quando o corpo
do mendigo de pescoço quebrado passa flutuando por mim. Eu não quero nadar com
eles. Não quero pensar em tudo que está sob a água, e os olhos de minha mente criam
algo realmente estúpido, como os corpos na base das pilhas abrindo suas mandíbulas de
repente e se atropelando pelo chão, na pressa de agarrar minhas pernas, como
crocodilos. Passo pelo mendigo, que balança na água como uma maçã bichada, e me
surpreendo ao ouvir um pequeno gemido escapar de meus lábios. Vou vomitar.
Chego à escada no momento em que uma coluna de corpos se desloca e desaba com
um estrondo doentio.
— Anna, pare! — Eu tusso, tentando evitar que a água verde entre em minha boca.
Acho que não vou conseguir. Minhas roupas estão pesadas como em um pesadelo, e
estou me arrastando pelos degraus em câmera lenta. Finalmente, bato a mão em chão seco
eme ergo até o andar principal.
O alívio não dura mais que meio segundo. Então solto um cacarejo agudo como o de
uma galinha e me afasto depressa da entrada do porão, com medo de que a água e mãos
mortas venham me arrastar para baixo. Mas o porão está seco. A luz acinzentada se
espalha, e vejo o fundo da escada e alguns centímetros do piso. Está tudo seco. Não há
nada lá. Parece um porão qualquer, onde as pessoas poderiam armazenar artigos
enlatados. Para eu me sentir ainda mais idiota, minhas roupas não estão molhadas.
Maldita Anna. Odeio essas manipulações do tempo-espaço, alucinações, o que for. A
gente nunca se acostuma comisso.
Eu me levanto e passo a mão na blusa para limpá-la, embora não haja nada lá para
limpar, e olho em volta. Estou na cozinha. Há um fogão preto empoeirado e uma mesa
com três cadeiras. Gostaria muito de me sentar em uma, mas os armários começam a
abrir e fechar sozinhos, as gavetas a bater e as paredes a sangrar. Bater portas e quebrar
pratos. Anna está agindo como um poltergeist comum. Que constrangedor.
Uma sensação de segurança desce sobre mim. Com poltergeists eu posso lidar. Dou
de ombros e saio da cozinha para a sala de estar, onde o sofá coberto com um lençol
parece reconfortante mente familiar. Eu me acomodo nele, esperando transmitir uma
impressão bastante decente de desafio. Não importa que minhas mãos ainda estejam tremendo.
— Vá embora! — Anna grita diretamente sobre meu ombro. Espio sobre o encosto
do sofá e lá está ela, minha deusa da morte, com os cabelos serpenteando no ar como
uma grande nuvem preta, os dentes tão apertados que fariam gengivas vivas sangrarem.
O impulso de pular dali com o athame em posição de ataque faz meu coração bater
apressado. Mas respiro fundo. Anna não me matou antes. Emeu instinto me diz que não
quer me matar agora. Por que outro motivo ela perderia tempo com um show de corpos
amontoados lá embaixo? Eu lhe dirijo meu sorriso mais atrevido.
—E se eu não for? —pergunto.
— Você veio para me matar — ela rosna, obviamente decidindo ignorar minha
pergunta. —Mas não pode.
— Que parte disso deixa você mais irritada? — O sangue escuro se move por seus
olhos e sua pele. Ela é terrível, repugnante, uma assassina. E desconfio de que estou
completamente seguro com ela. —Eu vou encontrar um jeito, Anna —prometo. —Uma
maneira de matar você, demandar você embora.
—Eu não quero ir embora —ela responde. Toda a sua forma se contrai, o escuro se
dissolve para dentro, e em pé diante de mim está Anna Korlov, a menina da foto no
jornal. —Mas eu mereço ser morta.
— Você não merecia antes — digo, sem discordar exatamente. Porque eu não acho
que aqueles corpos lá embaixo eram apenas criações de sua imaginação. Acho que, em
algum lugar, Mike Andover provavelmente está sendo comido aos poucos pelas paredes
desta casa, ainda que eu não possa ver.
Ela movimenta o braço, na altura do pulso, onde ainda há veias pretas. Sacode com
mais força e fecha os olhos, e elas desaparecem. Ocorre-me de repente que não estou
olhando apenas para um fantasma. Estou olhando para um fantasma e para algo que foi
feito a esse fantasma. São duas coisas diferentes.
—Você tem que lutar contra isso, não é? —pergunto com delicadeza.
Ela me lança um olhar surpreso.
— No começo, eu não tinha como lutar. Não era eu. Eu ficava louca, presa do lado
de dentro, e era um terror fazer aquelas coisas horríveis enquanto eu assistia, encolhida
em um canto da nossa mente. — Ela inclina a cabeça, e os cabelos caem com suavidade
sobre o ombro. É impossível pensar em ambas como a mesma pessoa. A deusa e esta
menina. Posso imaginá-la espiando através dos próprios olhos, como se fossem apenas
janelas, silenciosa e com medo em seu vestido branco.

Anna Vestida de SangueWhere stories live. Discover now