Epílogo

285 20 5
                                    

Não imaginamos que as pessoas fossem acreditar que ficamos todos tão incrivelmente
surrados — de tantas maneiras interessantes — por causa de um ataque de urso.
Especialmente com Carmel exibindo na perna uma marca de mordida equivalente de
maneira exata aos ferimentos encontrados em uma das mais horripilantes cenas de crime
da história recente. Mas eu nunca deixo de me surpreender coma disposição das pessoas
para acreditar.
Um urso. Certo. Um urso mordeu a perna de Carmel, e eu fui lançado contra uma
árvore depois de tentar heroicamente salvá-la. O mesmo com Morfran. O mesmo com
Thomas. Ninguém, exceto Carmel, foi mordido ou mesmo ferido, e minha mãe ficou
completamente intacta. Mas e daí? Essas coisas acontecem.
Carmel e eu ainda estamos no hospital. Ela precisou de pontos e está tomando
vacinas contra raiva, o que é uma droga, mas é o preço a pagar por nosso álibi. Morfran
e Thomas nem chegaram a ser internados. Estou deitado em uma cama com o peito
enfaixado, tentando respirar direito para não pegar uma pneumonia. Fizeram exame de
sangue para checar minhas enzimas hepáticas, porque, quando cheguei, ainda estava da
cor de uma banana, mas não havia nenhum dano. Tudo funcionava normalmente.
Minha mãe e Thomas vêm nos visitar em um esquema rotativo preciso e trazem
Carmel na cadeira de rodas, uma vez por dia, para podermos ver Jeopardy! Ninguém
quer dizer que está aliviado por não ter sido pior, ou que acabamos tendo muita sorte,
mas sei que é isso que estão pensando. Eles acham que poderia ter sido muito pior.
Talvez, mas não quero ouvir isso. E, se for verdade, eles têm apenas uma pessoa aagradecer.
Anna nos manteve vivos. Ela arrastou o obeahman e a si mesma sabe-se lá para
onde. Fico pensando no que poderia ter feito diferente. Tento lembrar se havia algum outro caminho a tomar. Mas não tento demais, porque ela se sacrificou, minha linda e
boba menina, e não quero que tenha sido por nada.
Alguém bate à porta. Olho e vejo Thomas. Pressiono o botão da cama para me
sentar e recebê-lo.
—Oi —diz ele, puxando uma cadeira. —Não vai comer sua gelatina?
—Eu detesto gelatina verde—resmungo, empurrando-a na direção dele.
—Eu também. Perguntei à toa.
Eu rio.
— Isso me dá dor nas costelas, seu merda. — Ele sorri. Estou feliz de verdade
porque está bem. Então ele pigarreia.
— A gente sente muito por ela — diz. — A Carmel e eu. A gente gostava da Anna,
mesmo ela sendo assustadora, e sabemos que você...—Ele para e pigarreia outra vez.
Eu a amava. Era isso que ele ia dizer. Era isso que todos já sabiam antes de mim.
— A casa era meio... insana — ele fala. — Como algo saído de Poltergeist. Não o
primeiro. Aquele com o velho sinistro. — Continua pigarreando. — O Morfran e eu
voltamos depois, para ver se alguma coisa continuava lá. Mas não tinha nada. Nem
mesmo os espíritos que ficaram para trás.
Engulo em seco. Eu deveria estar contente por eles estarem livres. Mas isso significa
que ela realmente se foi. A injustiça daquilo tudo quase me sufoca por um segundo.
Finalmente encontrei uma garota com quem eu queria muito estar, talvez a única garota
no mundo, e o que eu tive? Dois meses com ela? Não é suficiente. Depois de tudo que
ela passou, tudo que eu passei, nós merecíamos mais que isso.
Ou talvez não. Seja como for, não é assim que a vida funciona. Ela não se importa
com o que é justo ou injusto. De qualquer modo, ficar sentado nesta cama de hospital
me deu muito tempo para pensar. Tenho pensado em muitas coisas nos últimos dias.
Principalmente em portas. Porque foi essencialmente isso que Anna fez. Ela abriu uma
porta, daqui para algum outro lugar. E, a julgar por minha experiência, portas podem
funcionar nas duas direções.
—Qual é a graça?
Olho para Thomas, surpreso. Percebo que comecei a sorrir sem me dar conta.
—Só a vida—respondo, dando de ombros. —E a morte.
Ele suspira e tenta sorrir.
— Bom, acho que você vai sair logo daqui. Para voltar a fazer o que faz. Sua mãe
disse algo sobre um vampiro. Eu rio, depois faço uma careta de dor. Thomas ri também, meio sem vontade. Eleestá fazendo o possível para que eu não me sinta culpado por ir embora, para dar aimpressão de que não se importa se eu for.
— Para onde... — ele começa e me observa com atenção, tentando ser delicado. —
Para onde você acha que ela foi?
Olho para meu amigo Thomas, para seu rosto preocupado e sincero.
— Não sei — digo baixinho. Deve haver um brilho travesso em meu olhar. —
Talvez você e a Carmel possam me ajudar a descobrir.

Anna Vestida de SangueWhere stories live. Discover now