Ponto 08 - Velhas Memórias VI

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A Gorak piou baixinho. A garota a abraçou com todo o afeto. Aquela pequena estava furiosa, mas aos poucos foi se acalmando. As lágrimas de Sutura ainda caiam. Se dirigiu a escada em caracol, mas antes de subir olhou para Jamalist.

— L-lider — disse com a voz trêmula.

Ele olhou para ela.

— P-posso usar a banheira de m-madeira?

— Claro que sim, pequena, não precisa nem pedir.

— O-obrigado.

E subiu a escada com Arky nos braços.

Seguiu pelo corredor até uma porta de madeira, a abriu e subiu dois lances de escada e chegou a outro corredor. Abriu uma porta branca. Colocou Arky no chão, a ave ficou sentada paciente.

Se aproximou da grande banheira de madeira e abriu as torneiras até encher o suficiente para a ave não se afogar.

Colocou Arky dentro da banheira, a ave começou a pular e brincar com a água.

Sutura deixou ela ali, abriu algumas gavetas do armário perto da porta, olhou em cada uma delas e finalmente achou o que procurava. Sentou de costas para a banheira.

Por que eu tenho o corpo assim? Minha existência é apenas motivo de piada? — O olhar de Alexander a atormentava, um olhar cheio de nojo e desprezo. — As pessoas sempre me olham assim, eu não tenho culpa de ser o que sou, eu nem sei porque sou assim, mas eu achava que isso não importava, que podiam me aceitar, mas isso nunca vai acontecer, nunca — olhou para Arky. — Desculpa Arky.

Com o punhal que encontrou cortou os próprios pulsos. O sangue fluía dos profundos cortes que havia feito, o chão começou a formar uma poça de sangue embaixo dela, sua consciência começava a ficar turva, tudo se tornava distante, o pio alto e aflito de Arky e as intensas batidas na porta, alguém parecia chamá-la, mas tudo estava tão longe. A última coisa que viu foi a porta se estraçalhando e tudo ficando escuro.

Seus olhos aos poucos se abriam, sentia que estava num lugar macio. O vento um pouco abafado entrava pela janela. O teto lhe era familiar, era o do seu quarto na guilda. A cama era grande e ao seu lado Arky dormia encolhida perto dela.

Sentada em uma cadeira estava Meiryn, ela descascava maçãs e as cortava em cubos. Seus olhos amarelos e felinos se voltaram para Sutura e sorriu, levantou da cadeira e sentou ao lado dela na cama.

— Que bom que acordou, cortei umas maçãs fresquinhas, estão até um pouco geladas, acho que você vai gostar.

— Por que ainda estou viva? — levantou as mãos e viu os pulsos enfaixados.

— Não deixe o que esses canalhas fizeram com você ser o motivo para não querer mais viver — acariciou os cabelos negros de Sutura.

— Mas... dói tanto Meiryn, dói muito — as lágrimas voltaram, o olhar de Alexander, as palavras, as mentiras, as falsas promessas, o abandono para a morte.

— Então temos que fazer essa dor passar minha menina — pegou um pedaço de maçã e levou até os lábios de Sutura. — Experimenta, são gostosas.

A garota abriu a boca e aceitou o pedaço, não estava com fome, mas o gosto da fruta deixou uma sensação boa.

— Vou te contar uma história — Meiryn levou outro pedaço a boca de Sutura que o aceitou. — Você sabe que a minha raça há muito tempo foi escravizada, e até os dias de hoje continua assim. Nós Nekomin dificilmente conseguimos liberdade. Os Unalus mantém o controle sobre nós e nos vendem como escravos. Eu não fui exceção, eu nasci escrava e quando completei quinze anos o Unalu que era dono da minha família resolveu me colocar para leilão. Nossa família sempre teve uma vida horrível, sempre fomos açoitados. Em nossos braços, pernas e pescoços eram colocados anéis para suprimir nosso Sanctum. Nós obrigavam a fazer todo tipo de trabalho. Inclusive sermos um bichinho de estimação.

Eu fui vendida e me tornei isso. Um bichinho para um Unalu nojento. Ele me usava como queria e depois me batia. Eu não conhecia outra vida, para mim sempre havia sido assim, os Nekomin nasceram para serem escravos, era o que sempre diziam. Que os Arkhons nos criaram para isso, para servirmos os Unalus, ou qualquer outra raça que necessitasse disso. Essas coisas sempre foram ditas após Olum ter conquistado nossa terra e ter escravizado a minha raça.

Sutura fitou os olhos gentis de Meiryn, aquela mulher sempre fora assim com ela, nunca a olhou de forma a desprezá-la.

— Eu pensava em fugir sempre. Eu olhava para outras garotas, de outras raças, sempre sorrindo, sempre livres. Eu queria uma vida assim, mas eu nunca conseguiria fugir do homem que me comprou. Os anéis que suprimiam o Sanctum possuíam um mecanismo especial, se eu me afastasse da casa dele, meus braços e pernas seriam amputados. Eu não morreria imediatamente, sofreria até isso acontecer, uma morte lenta por perda de sangue. Ou então me encontrariam, estancariam o ferimento e me deixariam viver, assim sem braços e pernas, uma boneca que serviria apenas para ele meter em mim, ou seus cães, como já havia visto acontecer.

Porém Jamalist apareceu na minha vida. Aquele Rodurean que possui um sorriso cruel invadiu a mansão do homem que tinha a minha posse. Ele procurava um objeto que o Unalu havia roubado. Jamalist estava ali por conta de uma missão importante para a guilda. Eu nunca vi um massacre como aquele que vi aquele dia. Parecia a própria morte caminhando sobre essa terra. Quando ele me encontrou eu vi algo em seus olhos, algo que quase ninguém vê, eu vi piedade. Ele me levou com ele. Eu só pensei que estava mudando de senhor. Mas ele quebrou os anéis que me prendiam, e pela primeira vez senti o Eyn Sofh vazar do meu Sanctum numa torrente continua. Jamalist controlou esse fluxo até eu entender como fazer para fechar os Portões do Sanctum.

Jamalist me libertou. Ele disse que eu poderia partir para onde quisesse ir, me deu dinheiro, comida e roupas. Eu não pensei duas vezes e fui embora, a liberdade estava na minha frente, algo que sempre sonhei.

Porém na primeira viagem eu fui capturada, anéis colocados em mim e enviada para um leilão. E advinha o que aconteceu, Jamalist me comprou nesse leilão e me libertou novamente. Eu nunca vi alguém tão preocupado comigo, a não ser meus pais, como vi Jamalist ficar. O salão de leilão tremeu no último lance que ele deu por mim, uma grande quantia.

O Ovo da Fada Negra (Completo)Where stories live. Discover now