30| Sem palavras

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Quando as três pancadas na porta chegaram aos meus ouvidos levantei-me de rompante, sendo influenciada pelo terror que aquela casa vazia e silenciosa me fazia sentir, em convalescença com o som crepitante da chuva, que caia furiosamente lá fora. A verdade é que me sentia cada vez mais solitária e deprimida, como se a minha vida estivesse à beira do precipício e não houvesse nada que prendesse os meus pés ao chão, mas ainda assim, um braço segurava no meu e impedia-me de cair. Esse braço era provavelmente uma junção de todas as pessoas que ainda restam na minha vida, e pelas quais eu jamais cometeria uma loucura, apesar de ultimamente andar a viver uma vida bastante louca. Mas no fundo sou louca e fui-o durante muito tempo, senão não tinha terminado como terminei. Acima de tudo, não tinha afastado as pessoas que mais me amam.

"Cloe, abre a porta! Está chover a potes!", Kurt gritou, voltando a bater contra o vidro opaco. Apertei o casaco contra o meu peito e corri o mais depressa possível, rodando a maçaneta com tanta força que a podia ter quebrado. Quando o rapaz entrou, parcialmente molhado e com os cabelos encaracolados a salpicarem água pelo chão, recuei um passo para trás e caminhei calmamente até ao sofá, sentando-me com relutância. "Estás a sentar-te!? Temos de ir até ao aeroporto, lembras-te? A viagem ainda é longa."

"Eu acho que mudei de ideias...", murmurei, baixando o rosto como se me envergonhasse por ser tão insensível e instável. Provavelmente sentir-me-ia assim se não fosse todo o medo que me consumia, alimentando-se da minha alma como um parasita venenoso.

Enquanto Kurt refletia acerca do que eu acabava de dizer, olhei de novo para a janela e soltei um suspiro. Era inútil tentar remediar os meus erros, pois no fundo eles já estavam mais que feitos. Além disso, de que estariam os meus amigos à espera? Eles sabiam de antemão que eu jamais conseguiria enfrentá-los de frente, dizer um adeus, deixá-los ir. Michael teve uma prova disso e eles já sabiam que desta vez a situação não ia ser diferente. Eu apenas não me podia despedir, odiava a ideia, e só o pensamento de me imaginar a fazê-lo me dava voltas ao estômago.

"Cloe...", Kurt acabou por se agachar à minha frente, apoiando-se nos meus joelhos para não cair. "Cloe, olha para mim...", pediu, tentando manter um tom suave e relaxado. "Cloe, temos de ir. Tu tens de ir."

"Mas eu...", lágrimas rebolaram pela minha pele, chegando algumas a cair no soalho de madeira. Kurt suspirou, parecendo não saber o que fazer, e eu fui rápida a limpá-las e a apagar os vestígios da minha tristeza, voltando a reerguer o rosto e a endireitar os ombros. "Eu não sou capaz. Pronto. Não sou capaz, não consigo e não vou fazê-lo.", declarei, mais rápido e atabalhoadamente do que pretendia. "Eu achava que conseguia, mas não... não consigo."

"Porquê?"

"Porquê?", repeti. "Porque... porque eu não aguento vê-los ir enquanto eu fico aqui. Não aguento lembrar-me de todo o sofrimento que causei ao Michael no dia em que o deixei, e ter de repetir essa sensação, só que desta vez sem tê-lo longe. Ele vai estar mesmo à minha frente... como é que eu me posso despedir dele assim?"

"Cloe, tu não vais despedir-te para sempre... é provisório.", avisou, acariciando-me o joelho. "Vocês vão voltar a ver-se."

"Não estou tão certa...", mordi o lábio, apertando os olhos para não voltar a chorar. "Ele mudou de cidade, Kurt."

"Mudou?"

"Sim... descobri há cinco dias.", suspirei. "Ele mudou de cidade há dois meses e ninguém me tinha dito. Eu não vou voltar a ter a vida que tinha antes de o conhecer... provavelmente nem sequer o vou conhecer mais. Ele vai passar a ser um estranho."

"Cloe...", Kurt não sabia o que dizer, isso era óbvio, mas no fundo preferia que assim fosse. Não sei se aguentaria ouvir que tudo ia resolver-se ou outra mentira qualquer, provavelmente engendrada para me iludir e reconfortar, coisa que jamais resultaria.

Social Casualty II ಌ m.cOnde histórias criam vida. Descubra agora