36| A última carta

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Os meus olhos não conseguiam descolar daqueles papéis, que tão cuidadosamente foram dobrados e colocados em envelopes, todos eles com a inscrição de uma data diferente, de há cerca de seis meses atrás. O meu quarto escuro, somente iluminado pela fraca luz do candeeiro da minha mesinha de cabeceira, transformou-se num local solitário e subitamente apertado. Sentia o meu corpo gigante e o meu coração pequenino, submerso em demasiadas emoções, e na minha cabeça desenrolava o filme daquilo que as suas cartas relatavam. Imaginava-o em lugares negros, não só metafórica como literalmente. Michael tinha escrito coisas tão cruéis acerca de mim, mas ao mesmo tempo tinha aberto o seu coração à forma como verdadeiramente se sentia, contudo, não conseguia perceber porquê partilhá-lo comigo agora, depois de tanto tempo afastados.

Pousei a penúltima carta, ouvindo um tilintar vindo de longe. Era o tilintar do toque do meu telemóvel, que parecia ter-se afundado debaixo de todos os cobertores e edredons que me rodeavam. Prendi o cabelo rapidamente e debrucei-me para o encontrar, lançando peças de roupa e mantas pelo chão, e quando finalmente o tive na minha mão, demorei alguns segundos a assimilar o nome que preenchia o visor.

"Suponho que tenhas recebido as minhas cartas.", afirmou do outro lado da linha, com a voz sóbria e demasiado grave para o meu gosto. Não conseguia compreender se estaria chateado ou aborrecido comigo, apesar de já não haver razões para tal.

"Sim... estou a lê-las.", proferi baixinho, receosa.

"Vais em qual?", questionou, mantendo o tom introspetivo.

"Vou para a última.", mordisquei o lábio, olhando de soslaio para o interior da caixa da encomenda. "Michael... porquê agora?"

"Bem...", suspirou profundamente, "Eu queria que tu soubesses como me senti. Não foi propriamente fácil enviar-tas, mas eu também já não tinha mais nada que fazer com elas, e na verdade elas pertencem-te. Essas cartas foram escritas para ti. São tuas."

"Tu realmente odiaste-me?", sussurrei, sentindo terror ao adivinhar a resposta. O meu corpo encolheu, resguardando-se do frio que agora se fazia sentir, e do outro lado da linha ouvi o som de outro suspiro, seguido de um ruído de movimento.

"Não, Cloe. Na altura posso ter sentido que sim, mas... essas cartas não correspondem àquilo que eu senti verdadeiramente. Eu estava tão zangado e tão magoado que escrevi as primeiras coisas que me vinham à cabeça, daí parecer que te odiei, mas... tu foste e serás sempre o amor da minha vida. Eu ainda não perdi a esperança de te reconquistar.", senti-o sorrir, como se por momentos toda a aura negra se convertesse numa lufada de ar fresco. "Eu vou reconquistar-te, isso é uma certeza."

"Bom, para me reconquistares precisas que eu aceite ser conquistada.", levantei a sobrancelha, achando piada provocá-lo, um pouco ao jeito dos bons velhos tempos. "E tu sabes como eu sou teimosa."

"Oh, eu sei.", riu-se de novo. "Mas eu tenho os trunfos certos. Não há ninguém que te conheça melhor que eu."

"Verdade.", sorri. "Tenho saudades tuas, sabes... já não nos vemos há meses."

"Tens saudades minhas?", repetiu, parecendo incrédulo. "Muitas ou poucas?"

"Demasiadas.", suspirei, contendo as lágrimas que mantinha reprimidas. "Estou farta de não te ter... e essa foi uma das coisas que eu percebi durante todo este tempo em que estive afastada de tudo e de todos. Tu, Michael, és das coisas que mais falta me faz."

"O sentimento é mútuo.", confessou. "Tens de ler a última carta."

"Tenho medo do que diz.", encolhi os ombros. "As nossas últimas palavras um ao outro costumam ser sempre demasiado dramáticas e intensas."

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⏰ Última atualização: Apr 09, 2020 ⏰

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