Algo errado

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Resolvi não falar muito para não entregar meu nervosismo depois do que tinha feito, então eu e Schukrut não conversamos mais do que alguns minutos. Ele perguntou sobre minhas origens, se eu tinha família, quais eram meus passatempos e coisas triviais. Por mais inocente que aparentasse, eu não confiava naquele homem. Havia uma aura sádica nele.

Ao final do diálogo, ele chamou o homem que havia me levado até ali e pediu que me guiasse até meus aposentos. Por um instante tive esperança de ser colocado em um quarto, mas estava enganado. Voltei para a cela branca, novamente limpa, mas com o chão todo úmido. “Uma lição, neném”, o homem zombou.

Esperei algum tempo antes de tirar o papel de minhas roupas íntimas e ler. Primeiro me certifiquei de que ninguém chegaria a qualquer momento. Muito possivelmente não aconteceria tão cedo, mas precaução nunca é demais. Na verdade, eu teria sorte se me levassem algo para comer, e eu sentia muita fome. Meu estômago doía e se contraía.

Depois verifiquei o teto. Não vi câmeras, mas elas poderiam estar ocultas pela estrutura. Se existisse uma câmera ali e eu fizesse algo, eles veriam. Eu não sabia a orientação que esse equipamento ocuparia caso existisse, então o que eu poderia fazer? Deitei-me no chão e olhei para a parede. Meditei enquanto olhava para o branco meio encardido e acabei dormindo.

Acordei com o barulho do prato sendo colocado na cela. Corri para minha refeição e quase não senti diferença quando entrou em meu corpo. Sopa de ervilha; apenas três ervilhas nadando em água temperada com sal. Eu não podia reclamar, serviu para enganar a fome e era melhor que nada, no entanto, eu sabia que logo sentiria fome novamente, e também, vontade de ir ao banheiro.

Lembrei-me da ocasião do “banho” que havia tomado naquela manhã, não seria bom se quando eu tirasse a roupa eles vissem o papel. O que fazer?

Cheguei a um canto e encostei a testa na parede para pensar. Olhei para baixo,  me lembrei da água escorrendo para o buraco milimétrico. Talvez lá coubesse uma folha de papel. Deitei-me no chão como se estivesse cansado e fiquei imóvel. Olhei o vão na parede, caberia uma folha de papel, eu poderia fazer um canudo com ela, ficaria mais fácil.

Sentei-me  e olhei para cima. Confiei em meus talentos de ator enquanto encenava expressão de tédio. Depois de algum tempo, me coloquei de joelhos, apoiei a testa no vértice da parede e meu  corpo virou uma pequena proteção. Ótimo, eu só precisava pegar o papel.

Bem lentamente o tirei de minha roupa  e ainda mais lentamente o desdobrei, não queria correr o risco de que fizesse barulho. Quando terminei a árdua tarefa de desdobrar a folha, foquei os olhos e iniciei a leitura.

O papel estava manuscrito e a letra era terrível, não era possível compreender muitas partes. As primeiras palavras eram dados de Miguel. Nome, endereço, data de nascimento,  nome da mãe, telefone para contato, altura, peso, cor dos olhos e dos pêlos, e tamanho do pênis.

Que tipo de psiquiatra anotava o tamanho do pênis?

Depois havia a data de início de algum tratamento. E em seguida a descrição da patologia.

Transtorno [ilegível], paciente apresenta uma personalidade dócil e inteligente capaz de [ilegível], segundo a mãe o paciente sempre foi confiável e solidário. No entanto existe a [ilegível] que explica os acontecimentos estranhos [ilegível]. [Ilegível] irmãos [ilegível], Juan [ilegível] devido à violência [ilegível] pai, a mãe nunca [ilegível] e sempre atribuiu [ilegível]. Todavia ela [ilegível] as quatro [ilegível]. É necessário que...”

O restante do texto estaria na página seguinte, mas eu não a tinha. Nem poderia ficar com aquela que tinha em mãos para analisar as partes ilegíveis.

Vagarosamente enrolei o papel em um canudo longo e apertado. Em um instante joguei meu corpo no chão, simulei uma queda e aproveitei para empurrar o papel no vão da parede. Foi o tempo perfeito. Alguns segundos depois um dos brutamontes abriu a porta para pegar o prato e me levar ao banheiro.

Fui vigiado enquanto urinava, a sensação era desconfortável e broxante. Ainda assim tentei não parecer nervoso.

Depois fui levado novamente à minha cela.

Havia algo errado com Miguel, mas não entendi o que acontecia.  Ele tinha um irmão? Havia um “mas” naquela história.  Boa personalidade, mas ficha no psiquiatra não era boa coisa. Se havia algo errado, isso significava que Nia estava correndo perigo.

Eu precisava fugir dali.

A Rosa do Assassino [Concluído]Where stories live. Discover now