Prólogo

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Ação de Graças


― Elas vão adorar. – Suze diz, conferindo as roupas que estão dentro da caixa.

― Não, não vão. – Eu rio, sentando-me na cadeira da cozinha.

A casa onde fica o abrigo Flower Girl é velha, com dois andares, canos problemáticos e um assoalho que range só de você pensar em caminhar. O tipo de lugar que ninguém alugaria para nada, a não ser para um abrigo – e é só por isso que elas ainda estão aqui. Mas de alguma forma eu não consigo olhar para esse lugar e não enxergar um lar, um lugar seguro. O meu recomeço.

― Você bem sabe. – Suze continua, sentando-se do outro lado da mesa, de frente para mim.

Ela era bem jovem quando nos conhecemos. Eu, uma fugitiva que já tinha passado por três lares adotivos diferentes, com um bônus da minha estadia no reformatório por furto e agressão, e ela uma assistente social que estava tentando muito me fazer entender que tinha muito mais na vida do que as merdas que tinham me acontecido.

Suze foi a primeira – e única, por um tempo – figura de autoridade que reconheci. Voltar para o abrigo de vez em quando era minha forma de reconhecer toda a ajuda que ela me proporcionou. Assim como me tornar enfermeira foi a minha forma de me redimir com as outras garotas.

― Elas vão odiar roupas de segunda mão.

― As roupas não são um problema. – Minha amiga me olha com um sorriso que franze a pele negra em torno dos olhos escuros e cansados. – O problema é não ter alguém que se importe o suficiente para te levar para comprar essas roupas de segunda mão em um brechó ou coisa parecida.

Eu penso sobre isso. Sempre imagino como teria sido a minha vida se eu tivesse alguém que se importasse comigo desde o começo.

― Elas têm você.

Suze ri, abanando uma mão no ar. No meu trabalho só vemos as assistentes sociais quando precisamos informar situações de abuso. No geral não são cenas bonitas de se ver ou histórias bonitas de se contar. A maioria das pessoas não sabe que eles têm mais trabalho do que podem lidar, que correm dia e noite tentando encontrar lares adotivos temporários – e até permanentes – adequados para todas as crianças cujas fichas param na sua mesa.

Ninguém sabe como é um trabalho ingrato. E quando a gente vê toda a dor que leva até ele, é fácil esquecer isso também.

― É verdade. – Insisto. – Elas podem não dizer, mas lá na frente, quando olharem para trás, vão ver como você se importou o suficiente para interceder por elas com o juiz, conseguir a liberação do reformatório para o abrigo. Como se esforçou para oferecer alternativas seguras.

Ela me dá um sorriso pequeno e cansado.

― Sabe tão bem quanto eu que essa é a última parada. Não tem ninguém lá fora que queira elas.

― É uma merda – Suze me lança um olhar de aviso com o palavrão. – Saber que as pessoas que, biologicamente, deveriam te amar e proteger desde o segundo que você respirou pela primeira vez nesse mundo, não se importam. Mas você me ensinou que a vida é muito mais que isso, que a gente precisa se escolher. Com sorte elas vão entender isso também.

― São palavras bonitas, Andrea. Mas crianças precisam de pais.

Não respondo, porque sei que é verdade. Até hoje ainda fico me perguntando: se ninguém no mundo te ama, você ainda existe?

O problema com crianças no sistema é que, na maior parte das vezes, elas já viveram muita porcaria e o discurso de "tudo vai ficar bem" não cola, porque a gente sabe que dá para piorar. Sempre dá para piorar.

― Eu me inscrevi para a licença. – Não preciso explicar sobre o que eu estou falando, Suze sabe.

Ela me observa com aqueles olhos castanhos arregalados, como se eu tivesse anunciado que estou grávida de um Alien que pretende dominar a terra e escravizar a raça humana.

― Andrea, é uma grande responsabilid—

― Eu sei. – Dou de ombros e desvio o olhar para as minhas mãos, cutucando a cutícula do indicador. – Me mudei depois do terremoto e estou morando em um prédio legal. Tenho dois quartos, meu melhor amigo mora em frente. Eu tenho um sistema de apoio.

― Você não pode fazer isso só porque se sente culpada. – Ela fala na lata e ergo a cabeça rapidamente para encará-la.

É como se Suze pudesse enxergar dentro da minha alma.

Dou de ombros mais uma vez. ― Não é culpa. Quero retribuir. Talvez eu possa ser a ajuda que alguma criança precisa.

Ela me olha, a boca torcida se remexendo como se tentasse se livrar de algum pedaço de comida presa nos dentes. Imagino se ela vai começar um grande discurso falando sobre como eu preciso de ajuda, como não tenho condições de ajudar mais ninguém. Por fim, Suze solta um ruído indecifrável e desvia os olhos dos meus.

― Bem, você que sabe.

― Vai ser ótimo. – Tento soar positiva e ela sorri para mim.

― Está pensando em adotar?

― Deus, não. – Solto um riso nervoso e ela me lança outro olhar severo. Faz com que eu me sinta com 15 anos de novo. – A princípio é só lar temporário. – Acrescento rapidamente.

― Bom. – Responde depois de mais alguns segundos em silêncio, avaliando minha posição e expressão. – Espero que isso te ajude a encontrar o que está procurando, Andrea.

As Cicatrizes de Andy - Série Mercy Bay #2 (Degustação)Where stories live. Discover now