28 - O aprendiz

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A cabana ficava a leste do vilarejo, no meio da mata fechada. O céu da tarde clara estava tingido de azul límpido e celeste. A pureza angelical do clima não combinava com a tempestade profana que rugia dentro de mim. A luz entrava pela copa das árvores formando feixes até tocar o chão.

A janela ao lado da mesa de madeira onde eu estava acomodado estava aberta e a brisa fresca circulava pela casa pequena. Os meus calcanhares repousavam diante de mim, sobre o tampo do objeto rústico, que exibia uma maravilhosa coleção de lâminas muito bem polidas e afiadas. Elas seriam capazes de fazer o próprio ar sangrar. Eu me distraía com uma faca de uns vinte centímetros, polindo o metal já limpo como um espelho, com a barra da camisa enquanto aguardava que ele entrasse pela porta.

Ouvi os passos tranquilos se aproximando da cabana e o rangido dos degraus das tábuas velhas quando sustentaram o peso caminhando sobre si. A porta se abriu e cantou fora do tom cantarolado pela boca. O manto perfeitamente branco foi cuidadosamente acomodado sobre um cabideiro de pé ao canto da sala. O pelo alvo gracioso e elegante se destacava em contraste com a rusticidade do seu derredor.

— Aaaarr! — ele arfou quando se virou e olhou para mim.

— Olá, Ramon. — o meu sorriso refletiu na lâmina faminta.

Ele engoliu em seco com os olhos arregalados. Estava suando. Ramon havia se tornado o aprendiz da raposa branca quando ainda era muito jovem. Em uma das visitas da filha da lua ao nosso povoado, a criança havia se deslumbrado de maneira tal com a criatura que a seguia por onde quer que ela fosse. Ao final da visita, ela o convidou a ser seu aluno na floresta. Desde então, Ramon se tornou o seu fiel discípulo, aprendendo com sua mestra, o conhecimento milenar das estrelas.

— Não vai continuar a cantiga? Eu estava tentando identificar qual era. — falei.

Foi a deixa para o garoto fugir velozmente em direção ao manto. O metal passou zunindo entre ele e a veste. Ele freou bruscamente.

— Tsc, tsc, tsc, tsc. Eu não faria isso se fosse você. — aconselhei.

O aprendiz olhou para mim, arfando. Decidiu em uma fração de segundos que não precisava tanto assim da pelagem alva. A porta de saída era seu novo objetivo. A faca se cravou na madeira com ímpeto bem diante do seu nariz. O garoto ficou branco e deu um passo atrás. Uma lâmina prendeu uma mecha de seu cabelo na porta. Ele bateu a cabeça no cabo da arma. Uma faca em cada lado da cabeça.

Os meus pés foram para baixo da mesa e eu consertei a minha postura. A mão dele voou para uma das lâminas e a manga de sua camisa ficou entalada por outra faca, impedindo seu movimento. O aprendiz decidiu olhar para mim. Seus olhos exibiam um tom cálido de raiva. Não é o que eu queria ver lá.

O metal espelhado sibilou no ar e o rapaz foi rápido o suficiente para desviar o corpo alguns centímetros para a direita. Um reflexo rápido e uma perna se levantou, evitando um corte. Mais um silvo e o braço livre teve que se afastar do corpo, outro e o tecido dessa manga também ficou entalado na madeira.

A raiva tinha sido substituída por susto, mas ainda não era isso o que eu queria ver. Imóvel, com facas cravadas ao redor do corpo, com apenas um pé apoiado no chão, o aprendiz olhava para mim. O ódio doentio consumiu o meu espírito como combustível e queimou em mim com a violência de um inferno. O medo descorou o seu olhar enquanto ele olhava fundo nos meus olhos. Era isso o que eu queria ver. A adaga deixou os meus dedos em fúria e ele fechou os olhos. O talho na lateral do pescoço manchou o espelho imaculado e deixou um fino fio carmim escorrer lentamente sobre a superfície de sua pele.

— O-o que vo-você quer? — o aprendiz perguntou quando teve coragem de abrir os olhos.

Eu me levantei e comecei a recolher a minha bela coleção assassina. Primeiro a que estava mais longe, perto do manto, depois as que o encravavam na porta fechada. Ele não ousava se mexer ou desviar os olhos dos meus. A última foi a poluída de sangue vermelho. Eu virei a lâmina suja na mão. Pressionei-a contra o tecido do peito do rapaz à minha frente, o tecido manchou, a faca se limpou. A ponta da adaga espetou a jugular dele acelerando sua respiração.

Tempo Quebrado | 2Onde histórias criam vida. Descubra agora