Coletânea - Curtas da Meia-noite

Rotina

Era um dia qualquer e eu estava subindo para meu apartamento, como  de costume. A boa e velha rotina em ação, abraçando nossos cérebros gritando por descanso num dia atarefado. Eu sempre quis sair dela, verdade seja dita.

Cheguei ao meu andar, décimo terceiro, no maravilhoso State Buiding, bem no centro da cidade, onde poucos conseguem morar. É, eu me dei bem na vida, modéstia a parte.

Passo pela porta me sentindo um pouco estranho. O clima está leve,  mas não um leve agradável. Era rarefeito, como se eu estivesse sob efeito de algum entorpecente. Balancei a cabeça - quase em câmera lenta - para amenizar a sensação, mas não adiantou muito. Dei de ombros e segui com minha rotina, porém hoje eu não estava sentindo vontade de tomar meu café, então eu ia só observar a cidade da sacada e respirar fundo, sem a xícara mesmo. Eu gostava de quebrar a rotina de vez em quando, pelo menos nos pequenos detalhes, para tentar me sentir vivo.

Aliás... Vivo. Algo que eu já não me sentia faz tempo. As sombras e os demônios sussurravam em meio ouvido havia anos e eu não tinha conseguido me livrar. Agora, pelo menos, eu estava afastado deles.

Eu sempre senti seus hálitos ocres em meu pescoço, saboreando as ameaças ao pé do meu ouvido. Deram indícios, tentaram me controlar, mas eu era mais forte. Eles disseram que eu não conseguiria, mas eu provei o contrário. Eu precisava me livrar deles. Precisava ganhar deles.

Tentei, mas não consegui me empolgar, como sempre. A vida era vazia e chata, mas acho que eu cairia de novo na mesmice logo, logo. Pensando bem... era desesperador, eu não ia conseguir mais sair dela a partir de hoje. Me senti sufocado, agoniado e vejo que não ganhei, afinal, e não poderia fugir ou me salvar nunca mais.

Olhei lá embaixo num lapso de arrependimento, mas somente ambulâncias zuniam agudas rua adentro, chegando para tentar resgatar em vão  um corpo lá embaixo, o corpo de um homem morto que desafiou seus demônios. E eles riam mais uma vez às minhas costas.