Quando eu dormi - parte 2

18 4 2
                                    

Vó Tânia cheirava a Marlboro e urina de gato. Eu odiava as visitas à casa dela e saber que eu moraria lá era desesperador. Meu pai estava atrás das grades e ninguém havia me levado para visitá-lo, me achavam muito novo para tal e, dado o histórico perturbador, os maravilhosos adultos sensatos preferiram me isolar.

No mesmo dia da mudança, fui informado do falecimento da minha mãe. Aparentemente meu pai havia a matado, mas não quiseram, na época, me contar como. Apenas um tempo depois ouvi meu pai dizer em sua despedida, contando toda a estarrecedora verdade como um ato de redenção, ou pelo menos ele achava assim. De qualquer forma, tempos sombrios vieram sobre mim, sem mãe, com um pai criminoso e morando com uma avó de voz rouca e cabelo oleoso. Nada de bolinhos para mim.

O velório foi pesado, sem muitas pessoas. Todos olhavam com cara de pena para a pobre criança que havia "perdido" os pais - até porque meu pai com certeza não sairia tão cedo do xilindró - e faziam gestos de desgosto à menção do ocorrido, reagindo ao monstro deles, o homem cruel que assassinara friamente a esposa, alimentado pela bebida. "Que sorte não ter machucado o menino também", eles diziam, engolfando-se na atmosfera da desgraça que os seres humanos amam amar.

Depois de duas semanas, consegui ver meu pai. "Filho", ele dizia. "Papai te ama muito, tudo que fiz foi para seu bem. Por favor, viva bem e se cuide e, por favor, diga que tenho que falar com sua avó. É muito importante, muito, muito mesmo". Ela estava lá fora, veio me trazer e ver o filho-monstro. Talvez ela estivesse se preparando para encarar o que ele tinha a dizer, deviam ter sido semanas bem solitárias para meu pai. Depois de alguns minutos, ouvi Vó Tânia xingando e gritando uns bons palavrões como só ela conseguia dizer, com a voz de um ganso rouco quase indo dessa para melhor.

"Mentiroso do caralho", ela dizia. "E ainda usa os outros, eu não criei filho pra isso!"

Na última visita do meu pai, posso dizer que tive certeza do que ele tinha dito a ela.

O ano inteiro seguinte foi um inferno, o que me jogou em uma depressão profunda. A vida havia me amadurecido rápido demais, mas não às outras crianças. Quando voltei à escola, comecei a ser tratado à margem, com professores cheios de pena e coleguinhas travados de medo entorpecidos pelo poder do bullying que tinham sobre mim. Me empurravam, machucavam, me chamavam de abandonado, só pelo prazer de se sentirem grandes. Eu odiava, odiava a todos. Esse ódio também era entorpecente.

Minha avó era bem escrota em inúmeros aspectos, mas ela me conhecia. Quando eu contei o que estava acontecendo - depois de meses - ela foi à diretoria, fez um estardalhaço. Apreciei a atitude, mas só serviu para piorar as coisas. 

A diretoria era fraca e agora eu era o "netinho da vovó" e o "sem bolas". Pejorativo, né?

Comecei a matar aula e ficar trancado no meu quarto o dia todo, o que me rendeu notas horríveis. Eu rabiscava desenhos estranhos no meu caderno, colava manuscritos entre as paredes, estava obcecado e nem percebia. Como minha avó quase nunca entrava no quarto - ela sempre me chamava entre os seus dezessete gatos quando queria conversar, porque era custoso para ela subir escadas - aquele era meu canto secreto, onde a minha vil imaginação corria solta e as paredes perdiam espaço de tinta para dar lugar a escritos do mais profundo desespero.

Uns dias depois de uma semana obscura na qual faltei direto ao colégio, recebi uma notícia: um dos meus "colegas" havia morrido.

***

E aí, gente?

Pesado demais? Estão gostando? Espero que sim!

Eu vou continuar o desafio! Me desafiei a escrever todos os dias pequenos contos - ou trecho deles - de cerca de 500 palavras, para sempre terem algo para ler, rapidinho e que não ocupe muito espaço nessas vidas corridas que temos!

Acabou que este conto ficou grande demais - diferente dos outros - e transformei numa pequena história. Vou tentar incluir alguns desses entre os contos normais, para dar uma variada, ok?

 Por favor, comentem o que acham e votem nos textos! Vocês não sabem o quanto ajuda!

Sigam também @AureoAX para terem as notificações dos novos contos! Vou adorar interagir com vocês!

Um beijão a todos e até amanhã!

Coletânea - Curtas da Meia-noiteWhere stories live. Discover now