Horário de almoço

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Quando se é jovem, se fala muita merda. Hoje, mais velha, tenho plena consciência e o fantasma do meu erro me assombra até hoje.

Quando eu tinha uns dezessete anos, tive uma briga feia com minha mãe. Mas feia mesmo, de ficar mais de uma semana sem se falar e ter que engolir orgulho. 

Eu era bem abusada nessa idade, famosa adolescente rebelde sem causa, e saí um dia sem avisar - meus pais eram divorciados, então só ela passava as autorizações -, para um lugar que ela já não queria que eu fosse (eu havia pedido a maldita autorização). Confesso que hoje a entendo... Meus amigos não eram as melhores pessoas, tinha uns maconheiros, colégio público, todo mundo no auge dos hormônios... Minha mãe sabia que isso ia dar merda e implicava. Mas eu fui assim mesmo, quando ela pegou no sono.

A Lei de Murphy fez sua aparição defensora de mãe: eu bebi demais, um colega bebeu e fumou demais e começou a ficar agressivo. Aquilo não ia acabar bem, tentei me distanciar... Mas ele era mais forte, me arrastou para o carro dele e arrancou minha roupa ali mesmo. Quando dei por mim, em meio ao torpor, tinha acontecido. Ele me forçou ao sexo e me deixou ali, largada, com a porta do carro aberta. Eu estava devastada e, adivinhem só... Tive que pedir ajuda à minha mãe.

Só nesses momentos que você vê o quanto você está sozinha no mundo. Pensei em várias "amigas", todas estavam no mesmo torpor doentio das pessoas que precisam se afirmar de alguma forma no mundo, gritando que "estão aqui" de jeitos não aconselháveis. Meu pai, impossível. Já não confiava nele sóbria, muito menos bêbada. Então, meus queridos, hora de engolir o orgulho e gritar pela mamãe.

Eu nunca tinha visto uma mulher em erupção, mas lá estava ela. Desgrenhada, com ódio no olhar e cuspindo fogo como uma salamandra de TPM. Ela me arrancou do outro carro de qualquer jeito, nem ajeitou minha blusa - meus peitos estavam praticamente à mostra - e jogou no dela. Foi me dando esporro de lá até em casa, mas nada doeu tanto quanto o "estou muito decepcionada com você". Éramos só nós duas, no mundo inteiro. Éramos só nós duas e eu tinha fodido tudo e aquilo doía.

No outro dia, ela não me esperou pra tomar café e foi trabalhar. Nem no outro. Nem no terceiro. Chegava e se trancava no quarto, ignorando minha existência, fingindo que estava dormindo quando eu a chamava. Eu estava sozinha. Minhas amigas me ouviam, mas não entendiam, mandavam eu ignorar, mas porra... Eu tinha destruído a confiança da minha mãe, que se matava pra me sustentar, e ela não queria nem ouvir minhas desculpas.

Passou um pouco mais de uma semana e ouvi a porta do apartamento bater um pouco depois do meio-dia. Como era um horário estranho, fiquei com medo, ainda mais estando de férias e sozinha em casa. Abaixei a tampa do laptop e fui caminhando devagar para a sala, com todo o cuidado do mundo. Ouvi a porta da geladeira bater e um objeto metálico reverberando quando bateu no chão - provavelmente um talher - e vi minha mãe com uma cerveja que tinha acabado de pegar, se abaixando pra pegar o abridor que estava no chão. "Sente na sala, precisamos conversar", disse ela quando me viu. Ela falou num tom sério, mas não senti raiva na voz dela.

Minha mãe era foda, na moral.

"Filha, tirei o dia de folga pra ficar com você um pouco. Sei que não tenho te dado muita atenção e você acaba ficando muito sozinha, sei que você está no meio da sua adolescência e tem muita gente escrota no mundo, queria estar mais presente e ser sua amiga. Sei que não estou fazendo totalmente essa parte e, por isso, me desculpe.

PORÉM isso não justifica o caso de você mentir pra mim e ser indiferente desta forma ao que eu digo para você. Eu não te negaria algo se esse algo não lhe fizesse mal, criança. Não precisa me explicar o que aconteceu, merdas acontecem, mas eu não quero nunca, nunca que isso aconteça de novo. Também sei que não foi sua primeira vez transando, mas você deve se sentir um lixo porque foi forçado (eu tinha berrado isso no carro) e estou aqui para você. Vamos ver o que podemos fazer com esse marginal depois".

Eu só consegui chorar e balbuciar "me desculpe", pelo menos umas setecentas vezes, enquanto ela me fazia cafuné e abraçava. Eu me senti de novo a menininha dela, engrunhada naquele abraço caloroso. Não me sentia tão próxima dela assim há anos e era uma sensação incrível.

Mas isso não vai te livrar do castigo e de ter que recobrar minha confiança.

Eu ri. "Foda-se o castigo, você me desculpou", pensei.

Ficamos no sofá a tarde toda e desabafei tudo que precisava. Ela me aconselhou e me deu um caminho para seguir, como a boa mãe que sempre foi. Comemos pipoca, vimos série, rimos até ficar de barriga doendo. Foi um bom dia de mãe e filha e eu estava muito, muito feliz de ter essa relação com ela de novo, como nos velhos tempos.

Quando era umas cinco da tarde, o telefone tocou.

Corri para atender e uma voz grave me saudou do outro lado. Era um homem e procurava por mim.

"Srta Bianca?", ele disse, com a voz firme. "Preciso que compareça ao hospital Marques Campos, o quanto antes. Estamos cientes que você não é  maior de idade, mas só conseguimos contatar a senhorita e creio que seja a melhor pessoa para o momento".

"Como assim?", respondi. "Quem fala?".

"Sou o delegado Martins e, infelizmente, tenho que comunicar que sua mãe faleceu hoje às 12:03h num acidente de carro, quando saiu para o almoço. Morreu na hora e não houve nada que os médicos pudessem fazer. Sinto muito".

Estarreci, deixando o telefone cair no chão, com um estrondo. Ele quicou uma, duas vezes... Tudo parecia girar. Dei dois passos em direção a sala e contornei a parede que bloqueava minha visão do sofá.

A TV exibia uma reprise de Friends e a pipoca ainda estava quente. Meu celular estava com a tela acesa e, numa mensagem de texto que não foi enviada havia apenas seis palavras e um cursor piscando, implorando para que a digitação continuasse:


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***

Oi, pessoas!

Esse foi um mais "right in the feelings", uma coisa menos "terror" - embora sobrenatural - para que você possa valorizar um pouco mais quem te ama, dar atenção e se dedicar.

Confesso que eu não sou lá uma pessoa muito comunicativa na "vida real", mas acho essa uma mensagem legal de passar. Valorizem os seus!

Espero que tenham se divertido e por favor não esqueçam de dar aquela estrelinha marota e seguir para continuarem acompanhando o desafio de 365 dias de short stories!

Obrigado pela ajuda e pelo carinho de vocês e até amanhã! :D

Coletânea - Curtas da Meia-noiteWhere stories live. Discover now