Riktü

16 5 8
                                    

Finalmente estamos perto de encontrar algo, posso sentir.

As últimas semanas foram frustrantes e praticamente era só areia, pás, areia, pedras, areia... Já estávamos escavando esse sítio particular há pelo menos quatro dias, e abandonamos todos os anteriores pela falta de chances. Mas esse.. Ah, esse parece promissor.

Conseguimos identificar alguns restos mortais que já estão sendo datados, mas já havíamos encontrado esqueletos semelhantes e esta região era muito famosa por ter sido um cemitério de uma tribo que foi batizada de Riktü, logo não era irreal encontrarmos restos humanos. Essa era uma antiga sociedade que, pelas poucas descobertas que tivemos, havia desaparecido em meados do século 16 após algum evento misterioso. Descobrir este evento é o motivo do meu trabalho.

O sol escaldante já estava fazendo minha cabeça girar e os coletes com os utensílios de arqueologia pareciam pesar uma tonelada, então achei melhor parar e tomar uma água e talvez almoçar, porque eu ainda não tinha comido nada o dia todo. Quando virei as costas e comecei a subir as escadas adaptadas para a cratera, um de meus funcionários grita pela minha atenção e, pelo tom dele, eram boas novas!

Bambeei me equilibrando de volta nas ondulações do terreno, correndo o melhor que eu podia, até um rapaz que suava horrores - mas tinha um sorriso feliz no rosto. Ele havia encontrado um baú. Um baú bem velho e com as dobradiças emperradas de tanta areia entre as frestas, mas finalmente não era só mais um crânio ou um fêmur. Talvez documentos? Jóias? Algo que acusasse o costume da tribo?

Com todo o cuidado do mundo, içamos aquele objeto e o suspendemos com o maquinário porque não tínhamos força para tirá-lo de onde estava agarrado, deixando-o em cima de uma placa de metal posta sobre o chão. Analisei com cuidado e, tentando não danificar muito a peça, comecei a limpeza e a abertura das dobradiças, com precisão cirúrgica. O resultado foi muito melhor que o esperado.

Dentro do baú tinha uma série de objetos: um espelho arranhado, roupas desgastadas, um colar de dentes, jóias feitas com pedras preciosas que deviam valer uma fortuna. Além disso encontramos também algumas moedas estranhas - antigas e provavelmente desconhecidas - e uma máscara entalhada em madeira escura, quase preta. Lembrava um pouco ébano, mas tinha ainda menos poros e, de tudo, foi o que mais me prendeu a atenção.

Pedi que começassem a análise dos itens e peguei a máscara, pois era um objeto de encontro não usual nessas expedições e aquele tipo de serviço era o que realmente me fascinava. Eu a faria pessoalmente e, com metade do encontrado, já era possível revolucionar a Arqueologia. Alison Rivers estaria com o nome estampado nas maiores capas de revistas científicas do mundo!

Fui à minha mesa de trabalho e coloquei praticamente um holofote naquele objeto. A perfeição, os detalhes... Era como se eu tivesse olhando para um rosto perfeito, até mesmo com rugas, acnes, manchas. Tirando a ausência dos olhos, a boca vazada e semicerrada, e os buracos para as narinas, do queixo à testa o artista tinha feito um trabalho que colocaria nossa "Arte Moderna" para dormir para sempre. Aquele era um rosto perfeito, era incrível! Monalisa que me chupe!

Fui tirando alguns resquícios de poeira e areia com o pincel, limpandos os sulcos e as laterais como se estivesse a maquiando. Comecei então a perceber alguns detalhes atípicos.

Nas bordas da máscara parecia ter algumas inscrições numa língua diferente da nossa, que usava hieróglifos, mas não parecia nenhum dos conhecidos. Seria excelente descobrir alguém que pudesse lê-los, mas sem nenhum sobrevivente na tribo - apenas soubemos que tinha algo aqui porque a erosão do solo revelou alguns ossos de pessoas que viveram aqui, poucas até - era quase impossível. O trabalho, então, seria árduo e totalmente dependente do que mais achássemos.

As inscrições possuíam manchas vermelho-escuras que quase me passaram despercebidas devido à coloração da máscara. Elas já estavam secas e coloriam os símbolos apenas, sem borrar as partes não entalhadas. Virei a máscara para olhar o fundo, onde iria o rosto, mas não vi nada demais, ela toda era uma superfície lisa feita para encaixar no rosto. Virei a máscara para cima e fui à outra mesa buscar uma lupa mais maleável.

Quando voltei, a máscara estava sorrindo. Antes, o rosto era passivo, com a boca semi-aberta. Mas que porra era aquela agora? O sol tinha fritado meu cérebro?

"Senhora, senhora", eu ouvi o mesmo homem que achara o baú vindo correndo, "achamos mais coisa, aquilo realmente era um cemitério!".

Levada pelo momento, segui com a máscara sobre um pano no qual eu a apoiava, para não danificá-la, tenda afora. Era uma descoberta minha e eu não a deixaria à mercê de outros créditos.

Olhei para o fundo do buraco e meus funcionários estavam limpando pelo menos dez ossadas, todas em estado praticamente perfeito e enfileiradas como um cemitério supostamente as arrumaria. O único estranho naquilo tudo era que suas cabeças pareciam, de onde eu olhava... Viradas ao contrário.

Desci devagar e ouvi outro "senhora, senhora", antes de conseguir me virar. "Achamos outras máscaras, senhora, mais três! Deve ter mais, deve ser algum culto ou ritual antigo nunca catalogado! Ficaremos RICOS!".

Aquilo começou a me cheirar mal. Fui direto aos corpos, tomando cuidado para não quebrar a descoberta na minha mão. Poderia ser um conjunto? Um para cada habitante, talvez? Algum artista do passado querendo imortalizar seu povo?

Cheguei perto dos cadáveres e um grito arfado escapou da minha gartanta. Eles não estavam de cabeças viradas como supus, mas suas cabeças tinham apenas o formato, praticamente uma elipse de cálcio amarelada e rachada pelo tempo. Sem orifício de olhos, boca ou nariz.

Ouvi um grito.

Outro grito.

Mais um.

Virei desesperada e vi Marcos, o rapaz que queria ficar rico, tentando resistir a uma máscara que se atirava no rosto dele. Ela... Sorria, como a minha. Algo como o fantasma de um homem alto se projetava dela, usando-a como rosto, forçando sua boca para mais perto da de Marcos. Alguns homens tentaram se mover até ele, mas não conseguiram. As máscaras saíam de onde estavam e silhuetas se formavam delas, indo na direção das pessoas que as haviam encontrado.

"Alguns tesouros ficam melhor sem serem descobertos".

Minha máscara já se materializara no meio daquele inferno e estava chegando perto do meu rosto. Eu estava atônita, não conseguia me defender. Eu vi aquela máscara, na face de seu fantasma demoníaco, se transfigurar, na frente dos meus olhos. O nariz se afinou, os olhos amendoaram... O sorriso, o meu. Eu estava encarando a minha versão de madeira e sangue. Senti as farpas no meu pescoço, mordendo, dilacerando a pele. Eu queria gritar, mas não conseguia, minha boca havia sumido, como num passe de mágica, engolida pela minha própria pele. Meus olhos, nariz...

Senti meu sangue escorrer quente pelo meu peito até eu cair no chão, para sempre. A máscara, depois de satisfeita por me roer até os ossos, caiu ao meu lado, um acompanhante eterno esperando pelo próximo banquete, no qual eu seria sua silhueta. A silhueta do demônio. A silhueta do povo de Riktü.

***

Olá, pessoas!

Hoje saiu tarde, mas saiu, espero que tenham gostado!

Não esqueça a estrelinha marota e de seguir @AureoAX para receber mais!

Abração e até amanhã!

Coletânea - Curtas da Meia-noiteWhere stories live. Discover now