freedom

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Último

— Eu me lembro. Digo, está no meu banco de memórias que adaptou, não perfeitamente — O androide se virou e olhou para Kihyun — A propósito, já encontraram meu corpo? Se não estiver em mau estado poderíamos tentar fazer uma extração de memórias.

— Eles nunca te encontraram, e nem procuraram para falar a verdade. Changkyun deve estar lá, sozinho, jogado em algum canto escuro sendo devorado por larvas e coisas do tipo — Conforme foi chegando o final da frase Kihyun começou a abaixar seu tom de voz. Arrumou a touca do casaco e voltou-se em direção da rua novamente — Era só isso que eu precisava testar. Vem, vamos embora.

Aos poucos Yoo Kihyun ia aceitando a existência do androide Im Changkyun, mesmo que todas as vezes que o visse eram dolorosas acopladas com suas lembranças carregadas de amargura. Enquanto caminhavam pelas ruas do subúrbio de volta para a oficina, o clima parecia ainda mais frio com tanto silêncio. As ruas já não eram mais tão movimentadas com toda aquela umidade corrosiva para todos os lados, que era curiosa pelo fato de os distritos, em volta de Synthwave, serem tão secos e sem vida.

Os ruídos da cidade eram baixos, quase imperceptíveis. Ao mesmo tempo que haviam tantas inovações e novas tecnologias, o mundo parecia cada vez mais sem vida. Os humanos que restavam já se assemelhavam as máquinas, quando não controlados por elas, e mesmo assim não paravam para abrir os olhos e ver o mundo real. Kihyun se perguntou como era o mundo antes, nunca havia visto de perto uma cachoeira na vida ou um bosque, uma plantação gigantesca de trigo iluminada pelos raios solares alaranjados do sol de fim de tarde. Apenas conhecia luzes, sons sci-fi e longas placas de metal — as novas engrenagens que controlavam o mundo.

Kihyun sentiu uma pontada no interior do seu peito, talvez perto dos pulmões, seguido de um arrepio ao longo da derme. Lá estava ele de novo com medo do mundo, da morte e da solidão. A cada passo que dava percebia que aquele androide era só mais uma das engrenagens que agora temia. De um segundo a outro, cogitou desaparecer e nunca mais precisar ver aquele mundo falso de novo. Nunca mais precisar dirigir um carro modificado em uma pista perigosa para se sentir próximo da sensação de se estar vivo. Nunca mais passar pelas portas da Offworld e contribuir para um mundo ainda mais vazio do que já era.

Im Changkyun foi seu parceiro não completamente assumido por quase um ano. Nessa época o mundo se disfarçava sob os olhos do Yoo apaixonado, tudo parecia incrível mesmo que em seu interior fosse podre e morto. Chang acima de tudo parecia um homem puro e também não conseguia ver atrás desse ideal, estava preocupado em apenas não transformar os humanos ainda mais como máquinas. No caso, para suprir seu medo de ficar sozinho e não ser capaz de amar alguém antes de morrer. E que sorte, amou meses antes de perder sua vida injustamente.

Yoo Kihyun não queria acabar com o mundo por causa disso. Ele não ligava se as outras pessoas teriam fins terríveis, apenas precisava conhecer um lugar novo em que pudesse ser livre e ver plantas de verdade crescerem na terra, regadas pela chuva e iluminadas por um sol não artificial. Queria ver o mundo real com os seus próprios olhos.

×××

Levaram cerca de duas semanas para que Kihyun engolisse a ansiedade e fizesse o que precisava de uma vez por todas, sem rodeios. Quando estava saindo pela porta do apartamento com a mochila em suas costas, olhou para trás e sorriu ao sentir seus braços arrepiarem. Era a adrenalina de viver voltando a tomar conta de si. As paredes, as ferramentas e todas as outras coisas ali perderam valor sob seus olhos definitivamente. 

Suas coisas ficariam em boas mãos, as de Lee Jooheon. Horas antes digitou uma espécie de testamento onde doava suas coisas para o amigo, o único que esteve ao seu lado e o cuidou nos momentos mais difíceis. Mas principalmente, deixou o androide Im Changkyun para Jooheon. Sabia que sua invenção estaria em boas mãos e toda a Synthwave conheceria a obra tão bem feita. Kihyun desejava sucesso ao seu melhor amigo.

Mesmo que o androide representasse alguém tão importante, Yoo Kihyun sabia que nunca seria quem realmente queria que fosse. Não era a mesma pele, o mesmo coração e os mesmos ossos criados por uma força vital desconhecida, popularmente explicada por religiões sem fundamentos de exatos. Ele estava se libertando de uma coisa que sabia que só o faria mal a longo prazo, então por isso precisava ir.

Quando voltou as ruas, agora já nem mais disfarçado, não ligava mais para a diversidade. Na verdade, achava engraçado que agora conhecia tão bem o lugar mas um ano atrás estava sendo colocado ali pela primeira vez por seu falecido namorado. Kihyun percebeu que os humanos conseguiam se adaptar muito bem mesmo que em lugares novos.

Seus passos eram moderados mas decididos, na direção da fronteira com os distritos. Tempos atrás estaria sentindo medo, com o dispositivo de saúde em seu pulso apitando desesperadamente conforme seus batimentos cardíacos ficavam acelerados e confusos. Estaria suando frio e com medo de cada esquina que virasse, como se estivesse sendo observado ou seguido. Mas Kihyun não se sentia mais tão perturbado.

Não parou mesmo vendo a gigante fronteira a sua frente, com os portões em infravermelho queimando tudo o que passasse ali sem permissão. Seus passos seguiram concisos até que chegasse em uma cabine de controle controlada por robôs especiais programados para o serviço. Quando foi notado, ainda não se amedrontou.

— Saída proibida — A voz do robô era monótona.

Kihyun estendeu seu pulso, mostrando o A+ cravado em azul na sua pele.

— Eu vim em pesquisa e inspeção de um novo projeto da Offworld. Identificação: Yoo Kihyun, programador e desenvolvedor chefe — Kihyun puxou seu braço e o cobriu de volta — Pode verificar no sistema.

— Aguarde um instante.

O robô então entrou em modo de pausa e seus softwares começaram a buscar em rede e averiguar se as informações de Kihyun eram verdadeiras. Nisso, o Yoo sabia o que fazer. Caminhou sorrateiramente pelo corredor por trás da cabine em que o robô estava e encontrou as catracas com identificação digital especial para os classe A. Verificou se ninguém estava o vendo e colocou seu pulso pelo sensor. Ficou apreensivo até que fosse emitido um som e um sinal verde aparecesse.

Sua passagem foi permitida, então Kihyun sentiu seus batimentos dispararem. Correu em direção aos raios infravermelho que estavam se desligando para sua passagem. Quando saiu, pode sentir um choque em seu corpo com o ambiente. Uma luz branca forte invadiu seus olhos antes que pudesse enxergar o mundo lá fora, 

mas Yoo Kihyun sentiu seu coração livre ao pisar no mundo real.

CYBERPUNK | changkiWhere stories live. Discover now