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Eu acordei logo que senti Marius deixar o caixão, um vento gelado entrava pela porta entreaberta. Estava faminta, eu deveria estar horrível. Levantei-me vendo o Loiro vestir-se, ele deu uma risada sonora ao me escutar bocejar. Esfreguei meus olhos algumas vezes. Seu sobretudo era de veludo num azul tão profundo quanto o de seus olhos. Ele jogou para mim uma peça de roupa aleatória apenas para me cobrir do frio. Olhei para o lado. Armand ainda dormira em seu belo caixão de madeira cravejado com ouro e diamantes.
Marius foi comigo para a sala onde Sibelli me esperava obediente mas eu precisava caçar, precisa me alimentar. Pedi que ela esperasse e saí pela porta. As ruas estavam vazias. A neve começava a derreter. Meus olhos atentos e vorazes procuravam por qualquer cadáver que eu pudesse devorar. Um rato passou correndo e num reflexo eu o peguei. Levei-o a minha boca bebi o pouco sangue que ele tinha. Isso deveria me segurar por algumas horas só até que eu tivesse algo descente para comer. Sentia a neve lamacenta e suja tocar meus pés descalços. Não me importava. Encontrei alguns cadáveres secos em becos vazios mas mesmo assim decidi abri-los. Estava acostumada à me contentar com os restos dos vampiros já que eles não bebem todo o sangue de suas vítimas. Retirei seus corações. Eram grandes e num vermelho escuro, gotejavam um sangue espesso. Sentei-me no chão. Devorava aqueles corações com a voracidade e a fome de um vampiro. O álcool me fazia mal, me tirava o sangue das veias, me dava essa fome.
Caminhei de volta para a casa, minhas roupas sujas daquele sangue. Ninguém me veria, não me importei. Entrei pelos fundos, limpando meus pés num capacho que ficava ali. Ouvi vozes, vozes que não eram apenas as de Marius e Armand ou mesmo das crianças. Era a voz do vampiro Lestat, eu conhecia bem aquela voz. Mas ele era um dos principais membros do concelho e eu tive medo de entrar. A curiosidade era maior que o medo.
Logo que entrei na sala senti os olhares dos três filhos da noite. Marius parecia especialmente horrorizado com minha aparência. Armand e Lestat riram e eu tive raiva mas não queria dar mais motivos para ser morta. Abaixei a cabeça, olhando para o chão:
- Então essa é a criança que tanto ameaça o conselho?- Lestat disse gargalhando - Realmente não vejo motivos para quererem você morta, quer dizer... olha pra isso, é patético que sintam medo disso.- Armand parou de rir. Andou até perto de mim, passando seu braço ao redor da minha cintura.
- Vai convencer o concelho à perdoa-la?- Perguntou Marius preocupado.
- Sim, acho que sim. Só, tentem mantê-la dentro de casa enquanto isso.
- Lestat, ela também precisa se alimentar.
- Bom, então tomem cuidado.
Lestat saiu da casa, despedindo-se de Armand e Marius. Tive de me trocar antes que Sibelli me visse, eu era sua professora e não queria passar a imagem errada. Enquanto me vestia Armand entrou no quarto. Ele tinha uma caixa nas mãos, uma dessas caixas em que veem roupas de grife:
-Hoje é seu aniversário e eu... eu pensei em lhe dar isto.
Agradeci, guardei aquele vestido no armário. Fui ao jardim para treinar por mais algumas horas com Sibelli. Ela aprendia rápido e já estava muito boa com a espada. Benji quis tentar também naquela noite e eu tive de dividir minha atenção com ambos. Ao menos eu passei tanto tempo no jardim que não dei espaço para Marius ou Armand me repreenderem.
Sei que não importa muito minha opinião sobre isso, e que tanto Lestat quanto Daniel e o próprio Armand já falaram a respeito, mas é inegável à qualquer um que conviva com um filho da noite e seu Mestre como é forte o laço Do sangue. É extremamente insensato para um ser como eu, ou como um mortal, desejar estar dentro de tal laço, ser amado pelos filhos da noite. É tão improvável, tão inaceitavelmente ingrato sentir ciúmes de tal cumplicidade. Talvez esse seja meu maior erro. Desejar o amor daqueles cujas almas já estão tão imensamente poluídas. Louis sabia disso. Sabia no momento em que Lestat uniu Claudia à eles pelo Sangue que ela morreria. Talvez por isso ele a tenha amado tanto, ou talvez por saudade de seu irmão morto. Eu compreendia e compreendo até hoje o quão meticulosamente organizados eram os filhos da noite e como era ridículo da minha parte desejar ser parte daquela relação.
Na verdade me desesperava o coração saber que eu não poderia ser parte deles. Por mais imortal e imutável que eu fosse, não era uma deles. Não tinha o sangue deles e por consequência eu não seria jamais amada, acolhida ou teria minha natureza compreendida por algum deles. Eu escrevia às vezes, com meu grego esquecido, sobre esses sentimentos tão narcísicos e egoístas que eu guardava em meu peito. Era como Armand que limpava seus ícones ou como Marius pintava. Eu escrevia porque aquilo tudo não cabia dentro de meu coração.

Perséfone de HadesWhere stories live. Discover now