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No qual Arturzinho e seus amigos bolam um ousado plano para entrar na Casa Verde

Sob muitos aspectos, Itaguaí em nada difere de outras pequenas cidades brasileiras. As mesmas disputas entre dois tradicionais times de futebol, o Itaguaiense e O Conquista, as mesmas brigas políticas entre governo e oposição, as fofocas no "Vespeiro", o largo que fica no centro, ao lado da prefeitura e que serve de ponto de reunião no fim da tarde. Contudo, há uma peculiaridade: Itaguaí é uma cidade histórica, antiga. Chegou a ser importante à época do Império e nas primeiras décadas do século XX. Aos poucos foi perdendo importância, à medida que. por causa do desmatamento acelerado, ia desaparecendo a principal fonte de riqueza da região, a exportação de madeira. Desse passado restam poucas lembranças: o chafariz da praça, em bronze, importado da Europa, o vetusto prédio da prefeitura velha (há uma nova), alguns objetos conservados no pequeno museu da cidade, pouco frequentado; as ruelas sinuosas do Lavradio, bairro antigo, onde agora funciona o pequeno comércio do centro composto de lojinhas de artigos populares.
Mas, diferente de outras pequenas cidades. Itaguaí tinha até há pouco tempo um mistério. Este mistério era representado por um lúgubre casarão situado no meio de um grande terreno, na rua Nova. Apesar do nome, a rua Nova era das mais antigas da cidade e. em outros tempos, tinha sido a mais bela. Com o tempo, porém, a rua Nova se fora deteriorando; as antigas mansões estavam em ruínas, desabitadas ou então ocupadas por mendigos.
O casarão mencionado era conhecido como Casa Verde. O nome aludia à cor das janelas — numerosas, cinquenta de cada lado — mas a pintura de há muito se fora. Na verdade, nem janelas existiam mais: para evitar que o lugar fosse invadido, algum prefeito mandara murá- las. Murada fora também a porta de entrada, o que dava ao local um ar ainda mais fantasmagórico. Os moradores das redondezas o evitavam. Preferiam até atravessar a rua a passar na frente da casa. Havia razões para tal temor: em Itaguaí. todos diziam que a centenária Casa Verde era mal-assombrada. As mães, quando queriam ameaçar os filhos — porque não comiam, porque recusavam ir para a cama — recorriam a uma tradicional ameaça: — Olha que eu vou trancar você na Casa Verde, e de lá você nunca mais sai.
Era o que bastava para que as crianças imediatamente se comportassem como anjinhos. Com a Casa Verde ninguém brincava. Apesar de ela ter sido celebrada por Machado de Assis em O alienista, ou talvez até por causa disso, muitos itaguaienses achavam que era melhor evitar o assunto. Que era objeto de polêmica. A professora Isaura, por exemplo, que lecionava no segundo grau da Escola Itaguaí. era uma entusiasta defensora da obra do grande escritor. É preciso ler 0 alienista, sustentava, para entendermos o passado de nossa cidade, e para desfazer as lendas sobre a Casa Verde. Outras pessoas discordavam. Achavam que a obra havia prejudicado a imagem de Itaguaí e que o melhor era esquecê-la.

Por que se dizia que a Casa Verde era mal-assombrada? Nunca ficou bem claro: as origens da lenda perdiam-se no tempo. Sabia-se — e daí teria se originado a obra de Machado — que ali funcionara, em outros tempos, um hospício, um lugar para loucos. A tal aludia o dístico gravado sobre o frontispício: "São veneráveis os loucos: Deus tirou-lhes o juízo para não pecarem". Entre parênteses, o nome do suposto autor, o papa Benedito VIII. De fato, a frase era do Corão, o livro sagrado dos muçulmanos; a menção ao papa era para evitar conflitos com os católicos.
Um lugar para loucos, certo; mas isto não explicava o temor que nos itaguaienses despertava a Casa Verde. Antigos hospícios existem em muitas cidades, e alguns deles seguem funcionando, e apesar da aparência em geral sombria, não chegam a inspirar temor. Não, a razão forçosamente seria outra. Qualquer que fosse a causa, a má fama da Casa Verde era alimentada por constantes rumores: não faltava quem garantis-se ter ouvido ali, à noite, gritos e gemidos.
Nem todo o mundo, em Itaguaí, partilhava de tais temores. Arturzinho era um deles. Conhecido como o Xereta — os amigos diziam que se metia em tudo —, sempre tivera uma enorme curiosidade em relação ao local, que conhecia desde criança: uma tia morava não longe dali, e quando o convidava para passar o fim de semana com ela o Arturzinho não se fazia de rogado. Passava horas rondando o soturno lugar. Crivava a tia de perguntas a respeito; a boa senhora persignava-se e pedia que mudassem de assunto: aquilo não era coisa sobre a qual gostasse de falar. Melhor, dizia, era deixar as assombrações em paz; que o sobrinho esquecesse a Casa e parasse de ir até lá, sob pena de criar confusão.
Esquecer, porém, não era um verbo muito usado no vocabulário de Arturzinho, que não costumava desistir facilmente das coisas. Perseguia seus objetivos com tenacidade, mesmo que envolvessem confusão. Melhor dito: principalmente se envolviam alguma confusão. Arturzinho adorava envolver-se em situações difíceis, arriscadas até — para depois sair delas, o que, felizmente, sempre conseguia. Aos dezesseis anos (mas, alto e forte, aparentava mais), já passara por muitas aventuras. Por exemplo: uma vez escondera-se no compartimento de carga de um caminhão e viajara até Porto Alegre deixando os pais, que não sabiam de seu paradeiro quase malucos.
Quando esta história começa, Arturzinho estava às voltas com um outro projeto, não tão arrojado, mas ainda assim complicado. Esse projeto nascera de um problema. Arturzinho, cara popular, tinha uma turma, razoavelmente grande, de rapazes e moças que gostavam de ouvir rock a todo o volume, gostavam de dançar, gostavam de tocar instrumentos musicais. Nada de especial, nada diferente de outros jovens — mas onde ouvir e fazer música, onde dançar? O pai de Arturzinho, um médico que trabalhava muito e prezava o seu descanso, proibira qualquer tipo de zoeira em casa. Os pais dos seus amigos e amigas haviam adotado a mesma atitude: barulho, não, era a palavra de ordem. Nos bares, a consumação era um obstáculo. No clube da cidade não podiam entrar: tinham batido boca com o gerente. Enfim: sentiam-se como refugiados que país nenhum quer aceitar. E era esse o problema que vinha incomodando o

O mistério da casa verde Where stories live. Discover now