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No qual as coisas se precipitam. E tomam um rumo imprevisto

Arturzinho dormiu muito mal naquela noite. Estava apreensivo com o papo do jornalista — e chateado com a discussão que tivera com André. Certo, de vez em quando os dois se estranhavam, mas afinal eram amigos de infância, e faziam parte de um grupo. De manhã cedo resolveu telefonar. André atendeu. Ríspido: — Estou indo para a escola. O que você quer? — Queria reunir a turma. Acho que temos coisas para conversar... Você topa? Na verdade, não se tratava só de uma proposta, tratava-se de uma reconciliação. André entendeu; depois de um instante de vacilação, aceitou o convite.
— Está bem. No Marcolino, às quatro. Eu aviso o Pedro Bola.
— E eu aviso o Leo. — Arturzinho desligou, aliviado: de momento, ao menos, a briga com o André parecia superada.
Desceu para o café, encontrou o pai na cozinha.
— Bom dia, Arturzinho. — Mirou-o, atento: — Vejo que você não dormiu bem de novo. Ainda é a história da Casa Verde? — Mais ou menos.
— A propósito, você falou com o Eduardo? — Falei.
— E o que ele disse? — Disse que pode ajudar. Desde que a família, quer dizer, a esposa e a filha do homem, lhe peçam isto. Conversei com a Lúcia. Mas ela...
— Espere um pouco — interrompeu o médico. — Quem é a Lúcia? É a filha?
— É. A Lúcia...
— Estou começando a desconfiar — o pai, com um sorriso cúmplice — que seu interesse não esta só na Casa Verde...
— Ora, papai...
— Esta bem, deixa pra lá. Eu acho que o Eduardo tem razão. Ele só pode fazer alguma coisa se alguém lhe pedir, o paciente ou a família. F. imagino que para a família não seja uma decisão fácil. Talvez você tenha de dar um tempo, Arturzinho. Pelo jeito, não há nada urgente aí, certo? Errado: havia, sim urgência. Mas isso Arturzinho só descobriria depois.
Foi para a escola, mas, cansado e ansioso, não conseguia prestar atenção em nada. Também não conseguiu almoçar — o que lhe valeu uma reclamação da mãe: você não está comendo nada. Arturzinho, desse jeito vai ficar pele e osso.
Fez os trabalhos da escola e. às três e meia, voou para a pizzaria. Foi, naturalmente, o primeiro a chegar. Depois veio o Leo e, um pouco mais tarde, o André Catavento — de cara ainda fechada: — Que sacanagem você me fez ontem, hein, Arturzinho? Sacanagem, mesmo! Quem era aquela garota, afinal?
— Esta era a pergunta que você deveria ter se feito ontem — replicou Arturzinho. — Ela se chama Lúcia. É a filha do homem da Casa Verde.

— O quê! — André não podia acreditar no que estava ouvindo. — É a filha do maluco? Aquela garota bonérrima? Sentou-se, ainda aparvalhado: — A filha do maluco! Quem diria! — Pois é — continuou Arturzinho. — Como você pode imaginar, essa garota não tem uma vida fácil. Ela é quem leva a comida para o pai, a roupa lavada, E tem de fazer isso de madrugada, escondida. Era disso que estávamos falando, e eu estava tentando ajudá-la... Aí chega você com umas brincadeiras sem graça... Me desculpe, mas você cometeu um erro. — Bem, se é assim — disse o outro, sem jeito —, acho que sou quem deve pedir desculpas. — Deixa pra lá — disse Arturzinho, estendendo-lhe a mão. — Somos amigos, e amigos brigam de vez em quando. Faz parte.
Apertaram-se as mãos, comovidos.
— Mas então — prosseguiu André — como é que a gente fica? Estou vendo que aquela sua ideia do clube esta cada vez mais complicada...
Clube? Aquela altura Arturzinho pouco pensava no clube. Pensava em Lúcia, sim. Pensava o tempo todo. Estaria apaixonado? Provavelmente sim, mas sentia que a garota não estava em condições de lhe corresponder: aquela coisa do pai encerrado na Casa Verde monopolizava toda a sua atenção, todas as suas emoções.
— Pois é — suspirou. — Eu acho que o clube agora ficou em segundo plano. O negócio é a gente fazer alguma coisa por aquele homem. Estivemos conversando com um psiquiatra, colega do meu pai... Conta pra ele. Leo.
Leo relatou o papo com o médico, que André ouviu de testa franzida: — Deus! É complicado mesmo. E o que foi que ele disse...
Interrompeu-se. Pedro Bola entrava correndo, esbaforido: — Gente, vocês nem sabem o que está acontecendo! Tem uma multidão na frente da Casa Verde. Está todo o mundo lá: a polícia, o prefeito...
— Mas o que houve? — Arturzinho, alarmado.
— O Ildefonso, aquele da rádio, sabe?, está apresentando o programa dele da rua. Diz que daqui a pouco vai revelar o segredo da Casa Verde...
Arturzinho ficou pálido. Teria Ildefonso descoberto tudo? Mas como? Pedro Bola tinha a explicação: —Ele botou uns garotos pra vigiarem a casa, como nós. E aí descobriram essa moça, que vai lá levar comida para o maluco. O Ildefonso concluiu que tem alguém lá dentro. Daqui a pouco eles vão abrir a antiga porta...
Arturzinho saltou da cadeira: —Temos de impedi-los — gritou. — Leo, você vai telefonar para a Lúcia e para o doutor Eduardo. Peça para eles irem imediatamente à Casa Verde. E vocês dois, venham comigo! Seguiram correndo para a Casa Verde que — Itaguaí sendo uma cidade pequena — não ficava muito longe dali. Quando chegaram, Arturzinho assustou-se: de fato, havia pelo menos umas trezentas pessoas no lugar. Ali estava Ildefonso, com microfone na mão e fones no ouvido, fazendo uma transmissão direta. Quando avistou Arturzinho, seus olhos brilharam: —E olhem quem acaba de chegar, senhoras e senhores! O jovem itaguaiense

que foi o primeiro a descobrir o segredo da Casa Verde! Justiça lhe seja feita, ele foi discreto e não quis contar nada. Mas para o nosso programa, para o "Fofocas da Cidade", não existem segredos, senhoras e senhores! Foi só questão de um ou dois dias. A nossa investigação mostra que há alguma coisa nessa centenária casa, tão temida pela cidade. Mas dentro de mais alguns minutos, e com o consentimento do senhor prefeito, esse segredo será revelado! Fale aqui para os nossos ouvintes, Arturzinho! Conte como você desvendou o mistério, diga como está se sentindo agora! Mas Arturzinho recusou-se a falar. Em vez disso, e sempre seguido por André Catavento e Pedro Bola, dirigiu-se para a entrada, ainda murada. Dois operários, com ferramentas, esperavam a ordem do prefeito, que ali estava, para arrancarem os tijolos que bloqueavam a velha porta.
— Senhor prefeito — disse Arturzinho em voz baixa, trêmula —, o senhor não pode permitir que isso aconteça — Por quê? — perguntou surpreso o prefeito, um homem gordo e calvo, com grandes bigodes. — Esta casa está abandonada há anos, O Ildefonso está dizendo que não, que há uma pessoa morando aí. Nós vamos tirar isso a limpo, abrindo a porta. Qual o problema? Arturzinho vacilou um instante: — O problema — disse — é que tem alguém aí dentro. Um homem, um doente mental. E essa confusão toda vai fazer muito mal a ele.
— Bom... — O prefeito, confuso, não sabia o que dizer. Ildefonso já se aproximava: — Então, senhor prefeito? Chegou o momento tão esperado. Dê a ordem, por favor.
— Não façam isso — disse alguém. Todos se voltaram para o recém-chegado. Era o doutor Eduardo, que acabara de desembarcar de seu carro. Nesse momento, esbaforida, chegava também Lúcia.
— O senhor não é o doutor Eduardo? — perguntou o prefeito. — O psiquiatra? — Eu mesmo. E como médico estou lhe dando o meu parecer: não é prudente abrir a Casa, ainda mais na frente dessa multidão. Será uma violência contra o homem que está aí dentro.
— Mas espere aí — disse Ildefonso, irritado com aquela intromissão que ameaçava estragar o prometido desfecho. — Esse homem... ele é seu pacientei? — E — disse Lúcia. — A partir de agora, o homem que está aí dentro, meu pai, será tratado pelo doutor Eduardo. Minha mãe e eu estamos de acordo nisto.
Ildefonso voltou-se para o prefeito, que, visivelmente contrafeito, teve de admitir que o doutor tinha razão: o importante era proteger uma pessoa enferma. Diante disto, o radialista não teve outra saída: —Senhoras e senhores — anunciou ao microfone —, infelizmente, e por motivos de força maior, teremos de adiar a sensacional revelação prometida para hoje.
A reação geral foi de desapontamento. E as pessoas já iam embora, quando de repente alguém gritou: —Nada disso! Quero ver o que tem aí dentro! Ato contínuo, alguém irrompeu da multidão. Ao vê-lo, todo o mundo se afastou. Era um rapaz conhecido como Gorilão. O apelido fazia jus ao tipo físico: baixo, atarracado, fortíssimo, era conhecido como um brutamontes sempre pronto a comprar uma encrenca. Nos fins de semana, não eram poucos os que iam parar no pronto-socorro, a cara amassada pelos murros dele. Andava sempre acompanhado por três ou quatro capangas, tão sinistros quanto ele. Ao vê-los, Ildefonso tremeu. Gorilão arrebatou a marreta de um dos operários da prefeitura: — Se vocês não vão botar esses tijolos abaixo, deixem que eu faço.
— Que história é essa? — gritou o prefeito, irritado. — Largue essa marreta, Gorilão. Largue

já isso.
Voltou-se, procurando um policial. Não foi preciso: o homem já se aproximava, a mão no coldre do revólver. A tensão era grande. Mas então Arturzinho interveio — e com uma audácia e uma desenvoltura que depois até a ele próprio o surpreenderiam. Colocou-se na frente do Gorilão, pediu-lhe calma: — Você ouviu o que o doutor disse, Gorilão. Há um doente aí dentro, e o que você quer fazer pode ser um desastre para ele.
Gorilão não podia acreditar no que estava ouvindo. Quem era aquele que ousava enfrentá-lo? — Sai da frente, cara — rosnou. — Sai da frente ou te desmancho junto com os tijolos.
Novo momento de tensão, mas aí: — Olha lá — gritou alguém, apontando para um canto da casa. Todos se voltaram para aquele ponto.
Ali estava, aquela estranha figura, na sua casaca e sua gravata de fita: o recluso da Casa Verde.

O mistério da casa verde Where stories live. Discover now