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No qual os fantasmas revivem

Jorge estava curado, milagrosamente curado? Não: essas coisas, como explicou depois o doutor Eduardo, não acontecem. Ele tinha tido uma melhora, verdade que providencial. Mas nos dias que se seguiram, voltou a ficar estranho; mantinha-se quieto num canto, olhar parado. O psiquiatra ia vê-lo todos os dias. Conversava com ele, receitou-lhe medicamentos. O tratamento funcionou. Ele podia ir à loja, por exemplo, e atender as pessoas. Continuava muito calado, mas ocasionalmente falava sobre o período que passara na Casa Verde. No começo, dizia, fora horrível, aquela solidão, os ratos correndo pelos corredores. Em seus sonhos, agitados, o alienista aparecia frequentemente, perguntava o que estava fazendo ali, mandava-o embora. Mas ele queria ficar. Mais que isso: queria, ele próprio, tornar-se um alienista. E então a transformação foi total: — Eu já não vivia mais no presente, eu estava na Itaguaí daquela época, falava com o boticário, com o barbeiro...
Aos poucos, acostumara-se com a Casa Verde e com a solidão. Era como se ali se sentisse protegido de um mundo que muitas vezes lhe parecera hostil; mais que isso, parecia-lhe que estava aplacando a figura que o perseguia em imaginação: o alienista. Mas não tinha saudades desse período; ao contrário, sentia que agora estava se libertando desse penoso passado. Arturzinho e Lúcia começaram a namorar, claro, como era de esperar. Ele estava muito feliz. Mas não desistia da ideia do clube, coisa que agora parecia difícil. Afinal a Casa Verde não era mais um lugar misterioso; muitas pessoas iam lá, movidas pela curiosidade. Uma grande discussão passou a animar todas as rodas da pequena cidade: o que fazer com o lugar? O radialista Ildefonso dedicou uma série de programas ao assunto. Todos os dias entrevistava dez, doze pessoas. As opiniões eram as mais diversas, tão diversas que o prefeito resolveu realizar um debate público, em que propostas seriam apresentadas. Na noite aprazada, centenas de pessoas concentraram-se no Clube Comercial: até o Gorilão e sua turma compareceram. Como disse o Gorilão a uma senhora que estranhou a presença deles: — Todo o mundo aqui é cidadão. Todo o mundo tem direito a um palpite.
A expectativa era grande. As propostas eram muitas e variadas. Uma delas era, no mínimo, curiosa: o Everardo, dono de uma lanchonete, queria transformar o lugar num grande restaurante chamado "O Alienista", que ele administraria. Para isso já tinha até elaborado um modelo de cardápio, que mostrava com orgulho. Haveria uma salada chamada "Maluquice" e um "Ensopadinho Esquizofrênico", sem falar no sorvete "Delírios e Alucinações". Mas o

Everardo tinha pouca chance de conseguir apoio: Itaguaí não era terra de gurmês, e os nomes dos pratos pareciam de mau gosto.
Algumas pessoas achavam que o casarão deveria ser simplesmente demolido — esta era a posição do vereador Araújo: — A Casa Verde — dizia, em altos brados — é o símbolo de uma época ultrapassada, uma época em que os doentes mentais eram tratados como criminosos. É uma mancha vergonhosa no passado de nossa cidade. Não admira que as pessoas aqui não gostassem de ler O alienista. Machado de Assis nos colocou no mapa do Brasil, sim, mas de que forma? Nossa cidade passou a ser um símbolo de atraso, e a Casa Verde era a imagem viva desse atraso. Bota abaixo! Não faltava quem aplaudisse. Gorilão, por exemplo, estava deliciado: deixa comigo, garantia, eu arraso aquilo tudo em meia hora. No final, porém, ganhou a proposta defendida por um grupo de professores das escolas municipais, comandados pela incansável professora Isaura: a Casa Verde foi dividida em duas partes. Numa delas — a antiga sala gradeada dos fundos — funciona o clube de jovens com que Arturzinho sonhava: um lugar para música e dança, com bom isolamento acústico, naturalmente. A outra parte da Casa é a sede do Centro Cultural Machado de Assis. Uma sala foi transformada em biblioteca, outra em sala de vídeo, numa terceira funciona a oficina de artes. Mas a grande atração de Centro Cultural é o Museu do Alienista, organizado pelo doutor Eduardo, com a ajuda de Arturzinho e seus amigos. Trata-se de uma sala que foi preservada como estava, com as grades e tudo. Ali estão documentos antigos, encontrados num velho armário. Entre eles, uma preciosidade: o diário que o doutor Simão Bacamarte manteve nos dezessete meses em que lá passou, trancado.
Gravuras e textos, selecionados pelo doutor Eduardo, mostram como mudou o tratamento da doença mental através dos tempos.
Mas esta não é a maior atração da Sala Simão Bacamarte. A maior atração é outra coisa, uma encenação que se realiza todas as sextas-feiras à noite e que atrai até gente de outros estados — os ingressos são disputados semanas antes.
Às sextas-feiras à noite as pessoas que vão à Casa Verde têm um encontro marcado com o alienista. Que é Jorge, pai de Lúcia. Aos poucos ele foi se descobrindo como um excelente ator amador. E o que ele apresenta, às sextas-feiras à noite, é um monólogo intitulado "O Alienista na Casa Verde", extraído da obra de Machado de Assis. As pessoas vão entrando, e sentam em bancos e no chão, enquanto ele, usando a casaca escura, a gravata de fita e o pincenê — as roupas que herdou de sua família —, circula por ali, consultando livros, abrindo arquivos. Quando todos estão acomodados, ele se volta para o público e declara, em tom imperioso: —A ciência é meu emprego único; Itaguaí é o meu universo.
Começa então a narrar a sua história: os estudos em Coimbra e Pádua, a volta ao Brasil, o casamento com dona Evarista: —Feia? Sim. Mas tinha condições anatômicas e fisiológicas de primeira ordem: digeria com facilidade, dormia regularmente, tinha visão excelente. Resolvido o problema conjugal, a busca do caminho profissional: —Descobri que não havia no reino nenhum especialista em doença mental. O que me surpreendeu: a saúde da alma é a

ocupação mais digna do médico. A ela resolvi, pois, me dedicar. Para isto precisava de um lugar onde pudesse internar os doentes, a fim de observá-los e estudá-los. E aí surgiu a Casa Verde, este local em que agora estais representa a materialização dos meus sonhos. Foi inaugurada com imensa pompa: de todas as vilas e povoações próximas, e até remotas, e da cidade do Rio de Janeiro acorreu gente para assistir às cerimônias, que duraram sete dias. E aí... torrentes de loucos. De todas as vilas e arraiais vizinhos afluíam loucos à Casa Verde. Comecei a suspeitar que a loucura não era apenas uma ilha perdida no oceano da razão, era um continente. Para onde eu me voltava, via loucos. E comecei a mandar todos eles para a Casa Verde.
E o monólogo prossegue: Simão Bacamarte enfrentando a rebelião da vila, Simão Bacamarte recuperando sua autoridade, Simão Bacamarte mudando subitamente de ideia e expulsando todos os internos da Casa Verde, Simão Bacamarte recolhendo-se ao hospício. E aí vem um momento lírico: o momento em que ele se apaixona pela portuguesa Ana, aquela que tomava conta do lugar e do próprio Simão Bacamarte. O alienista faz-lhe ardentes declarações de amor. Mas essa paixão não dura muito: doente, ele vem a morrer. A cena da morte é impressionante: deitado num catre, à luz de uma vela, o alienista se despede da moça: —Dirão de mim, Ana, que eu morri louco como sempre fui. Não é verdade, Ana. Aqui aprendi muita coisa. Sou agora melhor pessoa do que era quando aqui entrei. Não foram os livros que me ensinaram a viver, Ana, foste tu.
Muitos espectadores até soluçam. Mas então as luzes se acendem: a encenação terminou. Todos aplaudem. Jorge é sempre muito cumprimentado. Não falta quem diga que ele faria sucesso no teatro ou na tevê. Modesto, ele diz que não aspira a tanto: tudo o que quer é viver, a cada semana, a trajetória do doutor Simão Bacamarte, seu bisavô: —Isso me ajuda a entender aquele homem — garante.
Em geral terminam a noite na pizzaria do Marcolino, batendo papo. As luzes da Casa de Cultura se apagam e só o seu Armindo, o velho zelador, lá fica. Ele e seus fantasmas: garante que muitas vezes já encontrou, no corredor deserto, um homem imponente, usando casaca e gravata de fita. Mas o seu Armindo não se assusta. Até gosta. O que seria de Itaguaí, pergunta, se não tivesse uma Casa Verde mal-assobrada?

𝙵𝚒𝚖

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⏰ Última atualização: Mar 26, 2020 ⏰

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