Queimando ( Parte 3)

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Daniel

Ele estava sob meus pés, clamando por misericórdia. As lágrimas escorriam pelo meu rosto. Sua expressão era de puro terror, mas também de puro alívio. Em algum lugar ali, existia o João que um dia conheci. O João que me deu um doce estranho para comer, e que dançou comigo.

A dor que eu sentia era tanta que pensei que fosse física. Senti meu peito doer intensamente. Ardia, queimava, reclamava o direito de poder abrigar um coração inteiro, não em cacos.
Suas lágrimas abundantes atingiam a barra da minha calça e queimavam minha pele. Queimavam por que eram lágrimas de arrependimento. Queimavam por que eram lágrimas de desconforto, lágrimas derradeiras.

Respirei fundo e olhei para aquela sala escura e pequena. As paredes de pedra e o chão de barro, assim como o instrumento que atormentou durante tantos anos.
Inspirei mais uma vez. Esperando que o ar frio e rarefeito me trouxesse as forças de que tanto precisava.
Sentei no chão e pus Paiva em meu colo.
Sabia que meu tempo era escasso. Alguns minutos mais e eles estariam ali. Mas, eu não poderia negar esse pedido.
Olhei para outro lado. Encarei uma fresta na parede, a que serviu de meio de comunicação entre nós.
Tateei pelo seu corpo, até achar o lugar onde antes ficava um tórax cheio de músculos sadios.
Peguei a faca e enfiei em seu peito, e a girei.

-Mande-os embora! Mande-os embora!

Ele dizia a todo momento, até em seus momentos derradeiros.
Olhei pela última vez em seus olhos. O castanho intenso. A luz se esvaindo de seu olhos, enquanto seus gemidos agonizantes se esvaiam de sua boca.

Uma última lágrima escorreu por seus olhos, assim como a vida escorreu por completo de seu corpo.

Depositei um beijo em seus lábios molhados, e me levantei.
Pus minha cabeça para fora da cela. Os passos estavam mais altos, agora. Eles estavam perto.
Peguei a gasolina e o fósforo. Espalhei por seu corpo, pelas paredes, pela cela.

Olhei para seu rosto uma última vez, antes de acender o fósforo.

Olhei para as sombras tremulando pela sala. Eu encarei o modo como estavam brincando e fingindo que nada estava acontecendo. Fingindo que não estavam preparando o fim.
Parei com meus devaneios e joguei o fósforo no chão, finalmente.
As chamas tomaram toda a cela e rapidamente se espalharam por seu corpo como se não machucassem, como se não significassem nada.
Antes que as chamas chamassem a atenção deles, saí da cela com o intuito de ganhar a rua, e deixei meu passado ali, queimando.

*********

Três meses antes

Paiva

Esperei por mais de trinta minutos. A cada passo imaginário que eu ouvia no corredor, meus sentidos ficavam alertas, esperando Kevin chegar para que tudo se resolvesse de uma vez por todas.

Esperando ali, minha mente começou a divagar entre as lembranças de um passado remoto, onde eu era apenas João, um agente secreto que tinha se apauxonado pelo seu chefe e bandido. Mas era paixão mesmo. Passageiro, efêmero, intermitente.
Nosso pequeno affair era a prova do velho ditado que dizia que você só conhece realmente alguém após comer 1kg de sal com ele.
Sabe, eu não odiava Kevin por completo, não.

Ainda me ressentia por ele ter me expulsado da sociedade no comando de tudo aquilo, e me posto numa posição simplória, claro. Mas não o odiava.
A parte de mim que poderia gostar dele foi apenas diminuindo com o tempo, até tornar-se quase inexistente.
E tinha depositado esse amor em outra pessoa. Ao lembrar-me do Daniel, lembrei-me, também, de que o tempo havia acabado. O plano havia falhado.
Levantei e me vesti. Estava decidido a dar um fim nisso. Desci até a sala de tortura, Kevin só poderia estar lá.

Revenge: As CinzasOnde histórias criam vida. Descubra agora