Normal

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O sol estava nos castigando, tamanha a intensidade com que brilhava e com que seus raios atacavam a minha pele. Estávamos saindo de Dubai. Talvez para algum outro lugar dos Emirados Árabes Unidos onde pudéssemos nos hospedar e ficar até termos um plano formado.

-Está com fome?
Paiva me perguntou, após voltarmos a cidade.

-Daqui a pouco chegaremos no litoral, não se preocupe.

Segundo João Paiva, ele tinha alguns contatos no litoral, um pouco longe do deserto. Segundo ele, levaria dois dias para atravessarmos a pequena faixa de deserto que cruzamos e chegar ao litoral.

Passamos horas a fio andando pela cidade, após passarmos pelo inferno (vulgo deserto).
A cidade era incrivelmente linda. Uma mistura de natureza com modernidade e história que te faz se agarrar a vida de uma forma nunca antes experimentada.
Das outras duas vezes em que havia visto a cidade, não havia reparado no contraste harmonioso presente ali.
Todas aquelas pessoas, todas aquelas vidas, todas aquelas vozes ecoando, gritando, querendo que comprássemos seus produtos. Os temperos, as especiarias...
Todo o astral daquele emirado me fazia esquecer que eu estava sendo procurado. Me fazia esquecer de quem eu era, e dos demônios que se escondiam por aquelas ruas, por aquelas paredes e casas.
Por algumas horas, finalmente, eu era um jovem normal, passeando com a pessoa de quem gostava.
De algum modo, João pareceu pressentir o que eu estava pensando, pois pegou em minha mão, e a apertou de um modo carinhoso.

-Parece que você é capaz de se perder nesses prédios e no meio se todas essas pessoas. E então, só por alguns minutos, você é capaz de ser alguém normal. Alguém que... vale a pena, entende?

Era exatamente assim. Assenti, apertando a mão dele de volta.
Nos sentamos em um banco, um pouco mais afastados de todo aquele alvoroço, e apenas ficamos apreciando a vista e nossas crises de identidade tardias/prematuras.

-Ah, você está com fome?
Disse Paiva de novo, após algum tempo.

-Eu poderia comer um camelo e um antílope. E ainda pediria sobremesa.

Meu estômago roncou alto, confirmando o que eu disse.
Ele riu da resposta. Eu ri também.
Decidi que ao menos aquela tarde, eu deixaria o passado um pouco de lado. Até o mais recente.

Ele se levantou e foi a um desses food trucks, e voltou com um tipo de pirão em uns potes estranhos.

- O que você está me dando para comer?
Eu disse, com as sombracelhas arqueadas.

-Arriscar é a alma do negócio.

-Hm... Okay. Não pode ser tão ruim.

Eu peguei uma colherada daquele troço e enfiei na boca de vez, tamanha era a minha fome.
Ele me observava, com expectativa emanando de seus olhos.

-Hm.... meu deus! Não sei se é a fome me enganando, mas isso aqui está maravilhoso! Tem... carne aqui? O que é isso? É feito de quê?

Ele riu de novo. O jeito como ele sorria era... era viciante. Era um desses sorrisos de rosto inteiro, que você quer guardar para sempre em um potinho e não deixar ninguém ver.
Mas o melhor era que não havia nenhuma sombra do João Paiva cruel e sem coração que ele se tornava na TN.
Era como se ele se transformasse em outra pessoa, uma pessoa legal. O tipo de pessoa que faria o que ele disse ter feito pela irmã.

Hareess. É de carne de cordeiro com trigo. E tem essa manteiga especial por cima que deixa tudo simplesmente incrível.

-Hareis?

Ele gargalhou dessa vez.

-Não, não é assim que se fala. É Ha-re-ess.

Eu estava ocupado demais comendo para falar, conversar ou rir.

Revenge: As CinzasWhere stories live. Discover now