Cabra de Bigode

34 3 0
                                    

O caboclo esgueirou-se em silêncio entre as catingueiras, farejando o perigo que sabia estar próximo. Cada passo seu era um cálculo sem números, puro instinto a guiá-lo na tensa tarefa de caçador que caça outro caçador. Magro e comprido como era, diziam os companheiros, podia facilmente se passar por um dos arbustos sem folhas do sertão, o que lhe era uma vantagem. Mas o que o bando mais apreciava nele era sua vista afiada, capaz de localizar o inimigo a quase dois tiros de distância, mesmo no espinheiro mais fechado.

– Chi-chi-chi...

O caboclo chiou baixinho, ficando que nem estátua. Fez um leve aceno pros que vinham logo atrás. Entendendo o sinal, três cangaceiros se agacharam vagarosamente. Eram um mulato grande e forte com cara de maníaco, um branco baixinho de cabeça chata e, no meio deles, um cabra enorme. Era alto, musculoso e de ombros largos, o queixo quadrado feito marreta. E tinha um bigode, temível e volumoso bigode que distinguia o mais impiedoso líder cangaceiro da região.

– Peixeira – sussurrou, áspero como uma cascavel – o resto do bando num tá longe.

Obedientes, seus comandados deitaram os fuzis e pistolas, preparando as armas brancas. Bigode e o caboclo caçador puxaram suas facas, enquanto o cabeça-chata ergueu uma foice e o mulato, este sacou uma pequenina navalha de barbeiro. Um estalo na relva seca, depois mais outro, e os cangaceiros se agacharem feito felinos prontos para voar na goela dos preás. Logo uns vultos marrons surgiram na trilha adiante, paralela ao caminho que seguiam. Eram quatro, um pra cada um. Não foi preciso um sinal de ataque: saltaram. O primeiro soldado foi logo atravessado pela ágil peixeira do caboclo; o segundo, intimidado pela terrível fama de Bigode, rendeu-se de imediato. O terceiro tentou mirar com o fuzil, mas a foice cortou-lhe a mão, fazendo-o derrubar a arma num grito; e o último soldado, achando que não precisava de mais do que isso, sacou um punhal pra enfrentar a navalha. Porém, foi surpreendido pela agilidade do mulato, incomum paro o seu tamanho, e teve sua garganta cortada num piscar de olhos. Não satisfeito, o mulato pôs-se sobre o inimigo caído, arrancando-lhe pedaços com a navalha. Estava vidrado, escancarando seus dentes brancos num sorriso maléfico que mais parecia um rosnado.

– Chega, Jeromão – Bigode gritou – Num tá vendo que o cabra já tá morto?

De imediato, o grandão parou e se pôs de pé. Envergonhado, curvou-se ao chefe num sinal de desculpas de menino arteiro. Todos no bando temiam o temperamento psicótico do mulato, exceto Bigode, único capaz de fazê-lo sossegar. Jeromão era péssimo atirador, mais mudo que um juazeiro, e não usava punhal, só navalha. Diziam que, antes de entrar pro cangaço, ele teria sido barbeiro lá pros lados de Quixeramobim, até o dia em que surtou e confundiu o pescoço dum freguês com o couro de afiar.

– Podem ir desembuchando – Bigode virou-se aos prisioneiros ajoelhados – A que distância está a volante? E quantos são?

– Falo, não – o soldado com a mão ferida gemeu – De mim num vai saber nada.

– Pelo jeito tem razão. Do jeito que essa tua mão faz sangue, vosmecê logo estará mortinho. Se quer um torniquete, é melhor ir falando. E sem mentiras, que cabra nenhum passa lábia por cima do meu bigode.

E abriu um sorriso demoníaco sob seus fiapos negros, fazendo os soldados se apavorarem.

Oxenti Bigode, tem alguém vindo ali pela trilha.

Era um mancebo que corria desesperado, seguido por outros dois. Bigode os reconheceu de imediato. Tratava-se de João, seu homem de confiança, vindo com os batedores do grupo que ele mandara para espiarem os caminhos da vereda.

– Pela cruz de Salomão. Os jagunço do coronel tão vindo pela estrada. E tão em maior número que nós!

Bigode franziu a testa. Eram os homens de Francisco Rufino, seu arqui-inimigo. O poderoso coronel que anos atrás roubara suas terras, forçando-o a seguir o caminho do cangaço, e que agora o perseguia implacavelmente.

Cabra de Bigode - e outras históriasWhere stories live. Discover now