Olhar de Capitu

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– Bati – disse Márcio, largando as cartas na mesa. À sua esquerda Jaqueline fez beicinho, dando a entender que estivera prestes a levar a mão. Desapontado, Cristiano também deixou suas cartas deslizarem pelos dedos. Não sabia da esposa, mas para ele faltou muito pouco. Qualquer carta de espadas, um sete ou um dez, e a rodada seria sua. Mas Márcio, sempre mais sortudo, vencera outra vez.

– Como eu dizia – Natália, esposa de Márcio, foi juntando as cartas, indiferente a outra jogada perdida – Tem uma lojinha lá na praia do Campeche que é uma graça. Chapéus, tangas, toalhas, tudo feito pelos artesãos e rendeiras da ilha. E não é caro. Você ia amar, amiga.

Cristiano não prestou atenção. Reparava no jeito de Márcio, seguro, com um otimismo inato. Era um bom amigo, sem sombra de dúvida. Mas às vezes sentia inveja dele, do seu emprego perfeito, da sua lista de habilidades interminável, indo desde o domínio no carteado até a aptidão com a bola nos pés. Tinha também uma personalidade magnética, capaz de fazer amizades com a mesma facilidade com que imantava o sucesso.

– Puxa que legal, quero ir lá contigo – Jaqueline tagarelava enquanto ia cortando as cartas – Mas só depois de irmos no shopping. Quero tua ajuda pra escolher uns vestidos.

Escolher vestido! Cristiano Sabia bem o porquê. Jaqueline estava ficando gorda e precisava comprar a roupa certa, capaz de esconder os quilos a mais. Cristiano suspirou. Aos poucos, ela deixava de ser a mocinha adorável com quem decidira se casar. Não eram só as gordurinhas, mas o mesmo jeito de sempre, as mesmas caretas e trejeitos, a mesma rotina maçante e massacrante, ano após ano. Quando o padre lhe perguntara se aceitava, deveria ter aberto o jogo: sua jovem, linda e tarada Jaqueline, com o passar dos anos, se converterá numa velha, frígida e feia Jaqueline.

– Lembrem-se, viemos pra deixar de lado a civilização e curtir a natureza – Márcio disse, como sempre fazendo uma observação inteligente. Já estava distribuindo as cartas, e logo Cristiano tinha as onze à mão para a próxima rodada da canastra. Ainda não havia ganhado nenhuma, e já estava tarde da noite. Não que o horário fosse problema, pois afinal estavam de férias, ele, Jaqueline, Márcio e sua esposa. Estavam em Florianópolis, longe dos problemas e da poluição da caótica Porto Alegre. Há muito planejaram esta viagem. E era hora de, enfim, vencer sua primeira mão da noite.

– Esta ilha é maravilhosa – Márcio se dirigiu a todos – Mas queria que o dólar baixasse logo pra podermos voltar a viajar pelo exterior. Não vejo a hora de regressar à Itália.

– Ah, nem me fale – Jaqueline falou bem alto, escandalosa – Quero fazer compras em Milão pra ficar de novo na moda!

De novo não prestou atenção na esposa. Nem bem havia organizado suas cartas quando percebeu, à sua direita, o olhar que mudaria para sempre sua vida. Era Natália, que o observara de soslaio com a expressão afiada de uma felina esfomeada. Foi apenas por alguns segundos, tempo suficiente para deixá-lo perturbado.

– Pena – Márcio exclamou – não tenho nenhum coringa comigo. Chance para vocês.

Cristiano ficou pensativo. O que significara aquele olhar cor de mel? Com cautela, observou-a uma vez e depois outra. Natália, porém, agora estava focada somente no jogo. Mas lhe pareceu que ela, mesmo voltada às cartas, seguia observando-o pelo canto da vista, exercendo a arte da observação discreta na qual as mulheres eram especialistas. Cristiano estava chocado. Estaria Natália, a esposa de seu melhor amigo, interessada nele? Não, bobagem! Ela queria apenas ler nos olhos do adversário se o seu jogo era bom. Só podia ser isso. Ou não.

– Bati – Jaqueline anunciou com um gritinho de satisfação, deitando as cartas à mesa. Uma trinca e duas sequências, forradas por dois coringas, aqueles que faltaram a Márcio. Jogada de sorte da esposa. Mas Cristiano não sentiu por ela nem orgulho nem alegria. Apenas pensava no olhar.

Cabra de Bigode - e outras históriasWhere stories live. Discover now