O franco-atirador

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Se chamava de Lobo Solitário. Claro, este não era seu nome verdadeiro. Tinha um nome como outro qualquer, nome de gente normal, como fazia questão de frisar, embora, por razões óbvias, não estivesse disposto a revelar. Recusava a definição de herói ou gênio incompreendido. Era apenas mais um indivíduo que buscava, com seu humilde exemplo, dar o melhor de si em benefício da sociedade. Sempre acreditou na livre iniciativa individual como chave para o bem comum. Por isso, a alcunha era mais um sentimento particular do que a invocação de qualquer ideal no qual pudesse querer inspirar os outros.

Não, ele não era nenhum criminoso, terrorista ou louco fanático. Nem desajustado ou sociopata. De forma alguma! Era, no fundo, apenas mais um prestativo cidadão de bem. Um indivíduo ponderado, esclarecido e com total capacidade de discernimento. Embora fosse fiel leitor da revista semanal e telespectador assíduo do noticiário da noite, no fundo não confiava nestes. Suspeitava que a tevê e os jornais não passavam de instrumentos da grande conspiração do inimigo, portanto confiava muito mais nas informações das redes sociais. Não era, portanto, nenhum tipo de monstro. Era apenas um patriota que costumava protestar aos domingos vestindo a camisa amarela da CBF. No entanto, mesmo nestas manifestações, costumava se sentir um estranho no ninho. A maioria dos ali presentes não possuíam força de vontade nem coragem suficientes para agir. Diferente de Lobo Solitário.

E foi com firmeza e determinação que ele o fez. Aprontou suas coisas com cuidado, guardando todo o necessário numa mochila de mão, e partiu. Seu destino era o edifício mais alto da cidade, localizado no coração da importante capital. Subiu pelas escadas para não chamar a atenção, só detendo seus passos corajosos quando enfim chegou ao ático. Lá havia uma porta trancada a cadeado, facilmente derrubado com uma marreta. Abriu a porta, e a luz dos céus o cegou momentaneamente. Estava na cobertura do edifício, e fazia um lindo dia de sol. Isso o deixou eufórico. Nenhuma toca imunda escaparia dos raios de luz. Não haveria onde se esconder!

Abriu sua mochila, tirando de dentro as partes de um enorme rifle com mira telescópica, montando-o com mãos habilidosas. O que estava prestes a fazer seria repudiado por alguns, sabia disso, mas sua decisão era inquebrantável. Entregue à própria sorte, o cidadão de bem era sufocado por impostos acachapantes, pelos corruptos e pela bandidagem à solta. Era preciso fazer algo. Era preciso fazer justiça com as próprias mãos! Por isso, tão logo terminou de montar e carregar o rifle, Lobo Solitário permitiu-se um momento de meditação. Respirou fundo, e sentiu necessidade de ajuda. Tirou da mochila um pouco de pó, espalhou-o pelo piso aquecido para secar bem e puxou com força. Agora, sim! Sentiu fluir nas veias a indignação e a exaltação, deixando-as se transmutarem em sede de destruição e em fúria passional. A ira se tornara mais do que simples válvula de escape. Era seu próprio alter ego, um novo ser a assumir seu corpo. Estava pronto! E, neste momento de êxtase exasperado, sentiu sua grande razão de existir.

Com ânsia de começar logo, baixou a pontaria do rifle em direção às ruas. Buscava com mira afoita seu primeiro alvo. E não tardou a encontrar um tipo dos mais suspeitos. Tratava-se de um rapaz com aparência de estudante, barba desgrenhada por fazer e cara de maconheiro sem-vergonha. Era, sem dúvida, mais um estudante de História ou filosofia, um baderneiro dentre tantos determinado a invadir alguma escola, a fazer balbúrdia! Mas o pilantrinha não contava com Lobo Solitário. Mirou no peito e puxou o gatilho com vontade. Um estrondo ressoou nos céus, ecoando entre os prédios. O rapaz foi ao chão e a confusão tomou conta das ruas. Pessoas caíam, se acotovelavam e corriam em todas as direções.

Agora era preciso agir com rapidez. Percorreu rapidamente com sua mira e encontrou um homem já de certa idade, terno e gravata bem alinhados, correndo cheio de pavor. Vestido daquele jeito só podia ser um maldito político! Mas como podia ter certeza? Então reparou na gravata, vermelha de um brilho sedoso, tamanha a qualidade do material. Agora tinha certeza, tratava-se sim de um político, e a cor da gravata não deixava mentir: era dos mais corruptos. Novamente disparou com satisfação, a bala atingindo em cheio a veia jugular do pescoço e derrubando o engravatado. "Já que gosta tanto de vermelho", riu descontrolado, "então fique agora todo vermelho".

Seguiu varrendo as ruas com a mira. Com todos fugindo não podia perder tempo raciocinando, era preciso julgar com pressa! Foi atrás dos mais distantes, "quem mais corre tem mais culpa no cartório", pensou, os dentes trincando. Localizou um rapaz negro, sem camisa, corrente prateada no peito e boné de aba reta novinho em folha. "Como ele conseguiu essas coisas?", pensou por um instante. "Só pode ter roubado, é mais um bandido", concluiu como um raio, mirando na cabeça e puxando o gatilho. Sentiu o contentamento da dona de casa que limpa aquela mancha difícil do canto da parede. "Bandido bom é bandido morto", exultou sacudindo o punho cerrado.

Mas não era o momento de comemorar, havia muito trabalho pela frente. Sondando as ruas caóticas com sua mira assassina, encontrou um tipo de aparência intrigante. O alvo era jovem, mas não a ponto de ser estudante. Usava óculos de aro redondo e tinha ares de intelectual de botequim. Suas intenções podiam ser das mais difíceis de se decifrar, mas não para Lobo Solitário. Claramente, era mais um professor subversivo, daqueles que sustentamos com nosso imposto para processarem as mais abomináveis lavagens cerebrais nos seus inocentes alunos, até deixá-los tão loucos e fanáticos quanto o próprio. Uma erva daninha da sociedade. Mas havia um jardineiro capaz de arrancar tal praga pela raiz. Lobo Solitário mirou no meio dos óculos e puxou o gatilho com força, regozijando-se ao ver a cabeça do subversivo estourar.

Ainda estava rindo como um louco quando reparou num dos últimos retardatários que ainda buscavam fugir do seu alcance. Era um carroceiro magro e estropiado, e podia passar por um simples carroceiro, não estivesse vestindo camisa e boné vermelhos. Obviamente, era mais um Sem-Teto, um ativista social, outro desses vermes que se reúnem em matilhas esfomeadas para invadir e destruir a propriedade alheia. Sim, novamente estaria fazendo um grande bem para a sociedade. Então mirou no peito do magricelo e disparou. Outro pária da sociedade no chão! Mais um excelente e conveniente trabalho realizado por Lobo Solitário.

Vendo que as ruas agora estavam desertas, e sentindo-se como o herói que salva a cidade derrotando o supervilão, recolheu o rifle. Calmamente, desmontou seu instrumento de trabalho, guardou-o na mochila e deixou a cobertura do prédio, sem ser incomodado por policial algum.


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No dia seguinte estava no conforto da sua casa, recostado na poltrona e vestindo seu roupão, quando decidiu dar uma espiada nas redes sociais para saborear o sucesso do dia anterior. Mas o inesperado o aguardava. As notícias eram unânimes em reportar o incidente como a maior tragédia que se abatera na cidade nos últimos tempos. Num blog, daqueles de sua confiança, encontrou uma pequena biografia das pobres vítimas fatais da covarde chacina. Estupefato, leu que o estudante era, na verdade, um insuspeito mestrando da faculdade de direito, estagiário de um escritório de direito tributário, nunca tendo se envolvido com o movimento estudantil. Já o engravatado não era político, mas sim um respeitado cardiologista. Incrédulo, seguiu lendo para descobrir que o pretenso bandido descamisado não passava de um jovem ajudante de pedreiro, rapaz trabalhador sem quaisquer passagens pela polícia. Já o suposto professor, este era funcionário de uma loja de departamentos ali perto. E o carroceiro? Sem-Teto nada! Era, na verdade, um... carroceiro! Apenas outro trabalhador sem passagens pela polícia e que não exercia militância nem mesmo na sua igreja evangélica.

Pasmo, deixou o celular de lado. Será possível que nenhum dos seus alvos era quem esperava? Que, em vez de disparar balas, estava na verdade disparando o seu preconceito? E mesmo se aquelas pessoas fossem quem ele pensava, isso lhe dava o direito de matá-las? Refletiu um pouco, e a seguir concluiu: "Claro que sim". Além disso, não importava quantos inocentes pegasse. Se pegasse apenas um deles, já valeria a pena.

E Lobo Solitário levantou-se tranquilamente para buscar seu rifle. Sem dúvidas nem remorsos, pôs-se a limpá-lo para o próximo grande trabalho.


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