Dúvida de criança

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– Olha só o que tu fez, guri – Ana berrava, desgrenhando os cabelos ao grudar-lhe as pontas das unhas – Deixou cair o pão da mesa! E ele caiu com a margarina virada pro chão. Eu não acredito, que ódio!

Diante dela, sentado à mesa daquele que tinha tudo para ser mais um tranquilo café da manhã de domingo, o filho fazia cara de abobalhado, encarando ora o pão caído, ora a mãe, como se o sucedido não fosse nada de mais. Ou pior, como se aquilo não tivesse ocorrido. Isso a enlouquecia! Por que o guri tinha de ser assim?! Não, essa não era uma tranquila manhã dominical. Era manhã de correria. Manhã de tomar banho e se arrumar rápido, de escovar os dentes, ajeitar os cabelos, fazer a maquiagem, engolir algo, sair para pegar o ônibus e chegar no horário no supermercado. E agora aquele pequeno desastrado havia acabado de acrescentar três novos itens à sua lista de tarefas urgentes: limpar o chão, rearrumar os cabelos e, é claro, arrebentar aos berros. Porque, afinal, ninguém é de ferro.

– Quando tu vais aprender a deixar de ser tão desastrado?! Nisso é que dá deitar tão tarde! Não consegue nem segurar o pão de tão sonolento. Também, não desgruda da porcaria do celular! Vê se pode, agora vou ter de limpar o chão antes de sair! A mãe aqui com pressa pra ir trabalhar e tu só empacando! Recolhe logo esse pão! Joga na lixeira do orgânico, e não esquece de tampar pra não chamar bicho! Cuidado pra não pisar na sujeira quando voltar. E vê se senta direito na mesa, e nada de fazer barulho enquanto bebe o leite!

Em silêncio, de cabeça erguida e sem demonstrar o menor remorso ou arrependimento, o menino foi e voltou enquanto Ana desabava os ombros sobre a mesa. Segurando a cabeça, recuperou o fôlego numa bufada só. Esse menino era mesmo uma provação! A começar pelo nascimento, culpa daquele bonitão, amigo do noivo da Priscila. Foi só uma noite no motel, e nem foi tão bom assim... Culpava-se sempre por ter caído na lábia dele, ainda mais em momentos como esse, em que torcia e molhava o pano na pia da área de serviço enquanto fuzilava com o olhar o relógio do micro-ondas. "Relógio maldito, por que não para de acelerar?!" Não havia tempo a perder, por isso agachou-se para esfregar o chão enquanto o menino permanecia à mesa, indiferente como sempre. Vivia montado nalguma nuvem bem distante, feito um pequeno e cruel reizinho no trono de monarca da casa. E ela ali, obediente plebeia, a esfregar o chão lambuzado pela margarina de Sua Majestade. E ainda por cima, havia a dor de cabeça! Que jeito de começar mais um longo e cansativo domingo! Ana ainda era jovem e bonita. Tinha anos à frente antes das rugas macularem sua face de garota que, pela força das circunstâncias, se tornara mulher. Mas, por trás da maquiagem a ressaltar seus olhos castanhos, abriam-se as portas de uma alma que envelhecia a passos largos. "Culpa do guri", pensava enquanto limpava o pano no tanque! Era um esquisito, um bitolado. Vivia com a cara socada nas telas do computador ou do celular, não se enturmava com os coleguinhas e era capaz de ficar na sala durante o recreio todo, sem perceber a hora do intervalo! Vê se pode! Pra piorar, o pai lhe deu um nome tão estranho quanto o moleque. Nome de um grande sábio grego, dizia ele, coisa impronunciável até para a mãe. Mas nas horas em que o filho conseguia irritá-la de verdade, Ana sabia chamar seu rebento pelo nome inteiro, recitado num fôlego só. Suspirou, e já sentada à mesa, mastigava uma bolacha com os olhos cerrados sobre o odiado relógio, bufando os problemas da vida, quando de repente, bloft! Lá estava outra fatia de pão ao chão. De novo com a margarina grudada no piso, de novo observando o pão com jeito inocente de quem não soube, não viu nem ouviu nada.

– Eratóstenes, seu tonto! – Ana vociferou num só golpe – Deixou cair o pão outra vez! E de novo com a margarina virada pro chão! Por que não segura direito as coisas, guri?! Ai, que ódio!

Já se levantara para ir buscar novamente o pano de chão quando o menino abriu a boca para falar, e aí estava um acontecimento raro. Por isso, mesmo apressada e indignada, Ana deteve-se por um instante para ouvir:

– Mãe, já reparou como o pão sempre cai com a margarina pra baixo?

Ana não acreditou no que ouvira. Tentou exclamar um "quê?", mas a voz não saiu da boca caída. Era muita apentelhação para uma manhã de domingo. E a cabeça insistindo em doer...

– Li isso na internet. O pão sempre cai com a margarina pra baixo. Fiquei curioso pra saber se era verdade, e por isso estou testando.

Aquilo fez Ana tremer nas bases. As mãos foram como um raio do pano para a cintura, os olhos começaram a fazer tiques. Não, o guri passara dos limites, até mesmo para a melhor e mais paciente mãe do mundo. Estava no seu direito, e agora não tinha síndico, vizinho nem Cristo que a impedisse de subir nos tamancos. Encheu os pulmões de uma só vez, desabafando com gritos histéricos:

– Será possível?! Não tem noção da realidade?! Eu aqui esbaforida para ir trabalhar e tu com essas brincadeiras? Qual é o teu problema?!

– Mas, mãe – o filho ainda tentou argumentar, calmo como sempre, irritando Ana ainda mais:

– Nem mais uma palavra, cretino! Tu ficas aí feito um bocó, falando e fazendo besteiras sem parar, e eu aqui me descabelando! Tu estragaste meu dia, minha semana, meu ano, minha vida! Levanta daí e vai logo limpando essa sujeira que não sou tua escrava, guri panaca dos infernos!!

E terminou jogando o pano com força no chão, a mão à testa latejante. Tentou recuperar o fôlego, e de novo olhou pro relógio. O patrão, como sempre, não ia entender... Então o filho pôs-se de pé, não para recolher o pano, mas para se aproximar dela, dessa vez com uma pose solene que deixou Ana estupefata.

– Mãe, nunca te ocorreu que, se a gente não se deixasse levar pelo imediatismo e parasse pra refletir sobre o porquê das coisas, o mundo poderia ser um lugar bem melhor?

Ana soluçou em desespero. Aquilo era demais! Ficou sem reação, sem fôlego e sem qualquer esperança. Por fim, quase chorando, exclamou o que àquela altura era mais uma súplica do que uma ordem:

Capaz, guri! Já pro quarto! Tais de castigo o dia todo, sem computador nem celular!

Em silêncio e com a cabeça erguida, o jovem Eratóstenes rumou ao quarto circunspecto, com ares de Galileu injustiçado pela Inquisição. A mãe desabou na cadeira, inconsolável, mãos sobre os joelhos sustentando a cabeça a latejar. Olha só as coisas que ela tinha de ouvir nesta casa. E tudo isso vindo de um guri de apenas sete anos! Com certeza isso era excesso de internet, ia ter de tirar o celular do menino, dessa vez seria pra valer, "e então as coisas iriam se ajeitar". Devia ter feito isto antes! Nestas horas adoraria poder arrebentar o guri de tanto laço, mas não podia por causa daquelas coisas de lei da palmada e de direitos humanos. Malditos comunistas!

Então se lembrou do velho inimigo, que nem por um segundo a deixava em paz. Virou-se para o micro-ondas, já esperando pelo pior. E de fato lá estava o relógio, indiferente às atribulações terrenas, como sempre galopando rumo à hora de bater o ponto. Ana estava atrasada. "Refletir por um mundo melhor", disse o menino! Mas o que diria ao patrão se parasse para refletir? Como cuidar do mundo se tinha de trabalhar seis dias por semana? Afinal, não podia deixar faltar o pão na mesa. E, falando em pão, lá estava ele, fatiado diante de si, só esperando a margarina. Pensou, será verdade? E afinal, que diferença faria na sua vida mais uma mancha no chão e mais um esporro do chefe, se era pela boa causa de fazer o mundo um lugar melhor?

Passou a margarina no pão e estendeu-o com a mão, ansiosa para ver o resultado.


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